CORPO MÓVEL
[...] o espaço privado deve saber abrir-se a fluxos de pessoas que entram e saem, ser o lugar de passagem de uma circulação contínua, onde se cruzam objetos, pessoas, palavras e ideias. Pois a vida também é mobilidade, impaciência por mudança, relação com um plural do outro. – Michel de Certau e Luce Giard
Artista e mobílias integram-se na imaterialidade da memória, no cotidiano que se tece aberto ao fluxo de pessoas, sabedor da passagem do tempo. Se a vida é mobilidade, o corpo é móvel, criatura e objetos transitam por lugares, oscilam no entremeio de histórias que deixam suas marcas na pele, na madeira do móvel, no azulejo demolido. Sabyne Cavalcanti franqueia o lugar onde mora, deixa abertas as portas do Mataquiri Museu para que a «relação com o plural do outro» torne-se plena, e assim estabeleça as trocas, possíveis no campo do afeto e da arte.
A morada, recorrente em sua obra, significa a proximidade com a natureza, com a terra, com a grama, com o barro que nasce da lama para moldar-se sobre o corpo. Tal qual uma arquiteta, Sabyne organiza espaços que abrigam sentimentos e ações de aproximação entre seres, lugares e objetos. Obras anteriores como SI, Casa Oca e Suprasensação oferecem moradas construídas com grama, cavadas na terra ou moldadas no próprio corpo para transforma-se em habitação do ser. O colecionismo de mobiliários agora a conduz a outra morada, de caráter museológico que se deixa invadir por histórias que exalam dos objetos expostos, advêm da casa museu, antes residência.
São espaços emendados, interligados pela terra, pela planta que floresce no quintal, pelas obras que se espalham junto às árvores. O museu e a artista convivem e imbricam-se no dia-a-dia. A coleção de mobiliário, retirada das camadas subterrâneas da vida, dissemina-se por salas e quartos onde estão abrigados o berço branco em que Sabyne dormiu, o arquivo da escola em que estudou, a sapateira proveniente do mercado de Cascavel, o grande armário doado pelo amigo José Tarcísio. São objetos que, como outros, trazem com eles o desgaste temporal, cheiros, intimidades encobertas por lembranças. As digitais perdidas aguardam o toque de novas mãos e o objeto adquire uma nova função: a da arte.
Marisa Mokarzel
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Imagens: Registo da exposição «Corpo Móvel» de Sabyne Cavalcanti no Museu de Arte Contemporânea do Ceará, MAC-CE, em 2015