Capítulo 1 – Urgence: je ne suis pas au courant Jérémy Pajeanc > Sandra Vieira Jürgens
O título em francês, a corrente, tem por base a passagem fluída de vários elementos numa mesma direcção. A obstrução dessa fluidez cria desníveis e desigualdades nessa passagem criando assim tensões. O melhor exemplo será sem dúvida uma barragem: a barragem é um filtro de atrofiamento de uma corrente, criando assim desníveis e desequilíbrios entre os dois lados do muro: um lado de acumulação e um outro de contenção ou contida repartição da água. Esses apêndices de controlo de corrente criam para além disso desregulações nas correntes normativas geográficas no correr da água, desregulando a sua fluidez.
Podemos fazer com isso o paralelo com as barragens que se têm construído nas fronteiras: entre a Europa Central e Europa de Leste, entre a América do Norte e a América do Sul, entre África e a Europa, atrofiando assim a normal circulação e a mobilidade das pessoas num mundo dito globalizado.
A velha Europa afirmou-se no último século não pelo controlo da corrente, mas pelas contra-correntes ditatoriais e pela passagem de corrente fluída e contaminação das diversas culturas. Foi na soma das várias culturas europeias e na libertação da passagem que conseguimos criar correntes sociais, culturais e políticas densas e fortes.
Essa decisão de fechamento das passagens conduz-nos a um congelar de correntes populacionais que estimulam a propagação de conhecimento, de experiências e «culturalidade libertina e expansiva». Mais grave do que isso, são as soluções paralelas que daí surgem para uma passagem e transição: a criação de redes de passadores, contrabando de mercadorias e pessoas, a cristalização cultural nacionalista numa tentativa de controlo absoluto e filtragem de migração. Contra-correntes que anulam uma corrente forte pela sua divisão.
Para onde vais? SVJ > JP
2015-1989: A queda, o fim dos muros, a abertura de passagens, dão lugar à criação de novas barreiras, a inesperados encerramentos, de fronteiras, territórios. Os ventos mudam. O curso interrompido, um passo atrás, muitos passos atrás. O desastre, o barco vai ao fundo. Fazemos parte de algo, sobre algo de que cada vez temos menos a dizer.
IMPOTÊNCIA, incapacidade de intervir. A impotência face à História, a impotência face à Europa, a impotência face ao presente. Muitos caminham em busca de fissuras, passagens, em terra, por mar. A realidade mais parece ficção do que verdade.
Capítulo 2 – À contre courant: le courant passé JP > SVJ
Inicio a viagem no Porto, cidade costeira onde na superfície flutua a urgência: uma intangibilidade. A transformação da cidade decorre. Continua a saída e esvaziamento dos velhos e verdadeiros moradores. A cidade é agora de passagem e acolhe quem por aí passa e não se fixa. As saídas populacionais ou migrações continuam mesmo sem «échéance» de término.
Chego a Pizzo, cidade costeira onde se agarra o Mediterrâneo: Mediterrâneo de fuga para alguns e novo seio para outros. A cidade permanece suspensa no tempo e numa cristalização degradada da permanência. A ruína estrutura o interior da cidade, tal como no Porto, e esconde os tempos áureos de industrialização e de crescimento cultural. Permaneço neste momento num antigo cinema – Cinema Mele de Pizzo –, na actualidade totalmente despojado da sua função primeira, mas ainda com uma estrutura arquitectónica e mobiliário da época. É incrível pensar que esse era o local cultural desta cidade, de maior procura e requinte. A televisão veio perturbar o mercado audiovisual social para encaminhar-nos num individualismo ou estímulo da privacidade.
Porto, Pizzo entre outros… são dois exemplos de uma nova Europa, de um novo modo de consumir e estar perante a cultura, com necessidades instáveis e mutáveis, que hoje encaminham a cultura europeia para fora do eixo clássico ocidental europeu, dos séculos XIX a XXI. Uma das razões fortes dessa mudança é o «essoufflement» da industrialização ocidental e o fechamento progressivo das fronteiras europeias.
A 3 de Outubro de 1990 desmoronava -se um muro separador na Alemanha. Na mesma década desactiva-se outro muro, de uso militar: Atlantic Wall, feito pelos alemães.
Hoje, a 8 de Outubro de 2015 acaba-se um muro fronteiriço na Hungria para reforçar o fechamento das fronteiras europeias, numa busca intangível de um dito problema de policultura: trunfo da Europa dos séculos XX e XXI.
Mesmo após as diversas tentativas de cortar com a corrente de passagem para o interior da Europa: passam por entre as redes diversos grupos de homens que hoje a Europa quer filtrar. Quem poderá julgar a escolha? Quais os critérios? Quais as possibilidades?
l’ici et maintenant SVJ > JP
O meu diálogo com o Jérémy está marcado pela experiência da ausência física em Pizzo e desenrola-se pela recepção de informações escritas dos participantes na residência e por imagens físicas e imateriais de um espaço contaminado pela atmosfera melancólica, de aparições, sombras, linhas de luz.
À maneira de uma projecção intermitente e difusa de imagens, o meu espaço mental é ocupado por uma junção de notas, relatos, indícios, objectos do passado e do presente, do velho cinema, mas também pela paisagem em redor, que observo e componho, numa montagem livre.
Com uma sensação paralela a um fenómeno de expansão do tempo e do espaço, vou dialogando com este conjunto heterogéneo de relatos mas também com acontecimentos e memórias que transcendem aquele espaço. Não são memórias pessoais, biográficas, mas colectivas, memórias adormecidas, relembradas da história do cinema, ficcionais, não vividas, não experimentadas e sempre as imagens televisivas. O impensado.
Ali tão perto. Um mar finito e infinito. Como será a Europa do futuro? Como projectar o futuro? Concentro-me nisso, na indefinição do que virá, na abertura a uma imagem de um futuro possível, com outros horizontes para este cinema, para a Europa.
EMERGÊNCIA. A construção de alternativas. O futuro como contrapeso à realidade presente.
A passagem de uma coisa a outra numa corrente de palavras e associações de ideias, da história europeia e do estado do mundo contemporâneo ao futuro. Je ne suis pas… au courant
Capítulo 3 – Sans courant, l’isolement est total JP > SVJ
Pizzo: 3 horas de viagem são necessárias para passar o mar e chegar a Stromboli. As correntes oscilantes ditam o ritmo de instabilidade da ilha vulcânica ainda em actividade. Durante a viagem são inúmeros os barcos militares e de guarda costeira que cruzamos, sinal da preocupação presente na passagem de refugiados vindos de África, que procuram abrigo na Europa.
Na nossa embarcação turística e autorizada a circular naquele mar, rompemos com o sentido da corrente, dirigimos-nos para uma arquitectura geográfica viva e humanizada, que respira e cresce a cada irrupção: Stromboli.
A chegada, uma ilha negra, de praias negras e montanhas negras basálticas. Sobre essa rocha negra, conforme avanço na minha caminhada aparece um manto de verdura muito ténue e frágil. À medida que avanço vai crescendo a mancha verde sobre o negro e ganhando volume: árvores, arbustos, pássaros por fim habitam o espaço que liberta pontualmente uns vapores espessos. O cheiro a enxofre começa a fazer-se sentir. É incrível como ali se mantém em suspenso a origem da geografia: da lava, a rocha, a terra, a arborização e vida animal. É sobre uma pele negra que tudo se mantém intacto e puro, completamente virgem como na origem.
Interessante também, é sem dúvida acompanhar a suspensão em que se vive: a vida não é ritmada pelo calendário civil, nem pelas modelações paisagística e sociais humanas, mas sim o inverso. O calendário e o dia organizam-se perante as marés – se é possível “bravar” ou não o mar: acompanhando o ritmo das correntes marítimas. – se a actividade vulcânica está estabilizada: esquivando as correntes de actividade da lava até ao mar.
É toda essa paisagem em mutação e anacrónica que procurava: a intemporilidade civil, a não presença: de cidade, de actividade económica acelerada. A única actividade económica é a turística, numa pequena escala, que vive suspensa e receosa de um eventual término ditado pela natureza. A cultura não é imposta e demarcada pelo homem sobre a paisagem, mas é a paisagem que absorve o homem, a sua presença e a sua cultura.
No regresso, são 19h: é um mar bravo que nos acompanhou na viagem e a ausência de luz. Avista-se uma luz giratória ao longe, que se perde na escura paisagem marítima.
à memória: vêm-me os refugiados que navegam em embarcações precárias pela noite negra a “bravar” um mar cáustico e agitado como este. Imagino o pânico que devem sentir pela agitação das águas, das correntes, a ausência de luz, a fragilidade da embarcação e o excesso de passageiros e gritos abafados que devem ecoar no mar alto, num isolamento total de humanidade.