(Seguido de 7 desenhos que ilustram nada)
Tudo o que fazia caía lentamente pela cratera abaixo. Um círculo negro onde faltava a alegria concreta do magma. Todo o gesto, cumprido ou por cumprir, seguia esse mesmo sentido. O buraco aumentava com os dias, e a sua margem de pedra, chão ou carne, desfazia-se no fumo.
Durante a noite, deitado, havia a sensação de um prego na coluna que descia ao centro da terra.
A minha última memória tinha sido no momento preciso da guinada: o som de metal a comprimir-se, o cabelo no alcatrão, o cheiro da pele a queimar, o brilho extenso da areia nos carris. Tornava-me leve e entrava, sem perceber, na escuridão ao meio-dia.
Agora que estou aqui, qual será o gesto inaugural? São necessárias apresentações?
Como grande parte daqueles que me olham à distância, em silêncio, encontrei o meu caminho até aqui. E devemos todos ter feito coisas milagrosas, merecedoras de alguma recompensa, ainda que o critério, esse, não tenha sido revelado. Eu, por exemplo, transportei pessoas, fiz o que me foi solicitado inúmeras vezes e aprendi línguas para saber descrever a cidade, (até nos dias piores, quando pensava repetidamente na ponte ou no silêncio que emanava da cratera). Com uma folha na mão segui as instruções, cumpri o necessário, sem deixar transparecer o cansaço e o tropeçar repetido no canto do quarto. Gestos com tempo ou as palavras certas no momento esperado – fiz isso tudo, exactamente como me pediram. Por vezes não reconheci a minha voz em frente ao espelho.
Agora que estou aqui, esta luz branca é demasiado forte (dentro das casas, onde vivíamos em altura e escutávamos o arrojar das mobílias, o sussurro e o grito eram brandos). Vou ter de aprender depressa, embora o tempo aqui não seja um problema.
Reparo que a paisagem sobreexposta altera-se agora a um ritmo desvairado e lento. Há um cenário onde se projetam todas as singularidades e nenhuma ao mesmo tempo. Ainda que possa parecer estranho, não me lembro do meu nome, e ao lembrar-me de outras pessoas lembro-me de muitos nomes sobrepostos, como se fossem sons de uma língua arrebatada. Não me lembro também, em que altura as máquinas começaram a falar e se falavam de facto. Mas sei que produziam algum som. Lembro-me, por exemplo, do som da torradeira, que emanava o cheiro da electricidade antes de se comer o pão e dos circuitos que as palavras faziam com a inclinação da luz. Se fosse meia tarde, o som prolongava-se até acompanhar o silenciar dos pássaros. Por vezes sabíamos onde estávamos, ainda que rodeados de um fumo azul cobre.
Agora mesmo, lembro-me que já soube o lugar de cada coisa, mas nesta chegada, quando todos parecem estar muito pouco preocupados sobre aquilo que se soube alguma vez, agora que não há pressão para entreter o outro, para ser dominado ou dominar, para fingir a força e executar a instrução, tudo o que teve alguma lógica sobre a qual se formaram sentidos, tudo se parece a tudo na mesma ordem de importância. E já não há espaço para a coreografia do antes.
Os seres que ainda agora estavam a olhar-me à distância, com um ar profundamente familiar e estranho ao mesmo tempo, parecem estar à espera de algum gesto mas, ao mesmo tempo, estão imersos num universo de jogo próprio, de contemplação e prazer rarefeito na luz. Afastam-se agora. Caminham lentamente para fora e eu permaneço sozinho, num dos lados do círculo. Abre-se uma arena sem chão que se expande lentamente. Acompanho o seu contorno. Os seres estão a desaparecer agora num nevoeiro espesso borracha de fumo, entram e são eles também parte do fumo. Mas logo voltam a sair e, sem esforço, montam ecrãs com suportes finíssimos, que ao serem elevados, juntam-se uns aos outros, formando uma cúpula perfeita de cristal, tão grande que demoraria horas a caminhar em seu redor. Entra por ela a mesma luz, reproduzida com a lâmina do cristal, luz suave cujo timbre é impossível de replicar. Entretanto, essa cúpula formada por todos os ecrãs, começa a ser preenchida por imagens, algumas que eu reconheço, outras estranhas. Neste momento, a dúvida dissipa-se e a cratera de luz não tem cor, é dia e noite ao mesmo tempo, transparência que seria possível através do ar.
Estou suspenso sem rosto no centro do círculo. Todas as imagens, sons e cintilações, misturam-se numa única composição, que faz com que o meu corpo balance, se altere e assuma formas que ao serem completadas se desfazem imediatamente para darem espaço a outras. É como um texto calcado numa folha muito fina, apagado com a frequência da luz. Vejo-me também de fora, de todos os prismas e pontos de vista. Habito as outras figuras, partilhamos a mesma respiração, não há mais seres, não há mais eu. E de súbito essa cúpula infinita, rodeada pela dança, desfaz-se e os vários pontos de luz juntam-se num único ponto.
Agora mesmo, um som inominável aproxima-se, ocupa todo o vazio. Esse som acompanha a intensidade da luz. No ponto onde estou, uma boca revolve-se como a pobre cabeça executada de um polvo, ganhando uma outra forma através de duas mãos. A partir daqui, como se o carvão dominasse o ar, desenham-se nuvens negras que têm o aspecto de seres nunca vistos, que se movem para fora como bolhas multiformes de cabelo, seguindo a repetição desse único som.
Sinto outra vez o calor no rosto ou o peso dos ossos dentro do corpo.
Há uma mão encostada a uma das têmporas.
O som da sirene aproxima-se,
a mão tem uma voz que canta e nela o pulsar.
Ao longe,
uma cratera que lentamente se fecha.