Ao dispor como pano de fundo as reminiscências das guerras Napoleónicas e das guerrilhas espanholas contra o invasor, a cativante série de João Jacinto convida o espectador a uma caça imaginária dos seus fantasmas e vestígios visuais e históricos escondidos. De facto, os desenhos saturninos de grande escala foram feitos a partir da Produção de pólvora na Serra de Tardienta de Goya, datando de um período entre 1810 e 1814.
Repetindo-se em variações dinâmicas, os desenhos espectrais e no entanto densamente feitos de várias camadas e texturas abrem um espaço para a presença alucinatória do olhar activo de Goya ao visitar Saragoça, em 1808, com o General José de Palafox y Melci. Ao testemunhar a devastação provocada pela artilharia francesa, Goya começou em simultâneo a sua série de gravuras Os desastres da Guerra, a que chamou As consequências fatais da guerra sangrenta de Espanha com Bonaparte e outros caprichos enfáticos, e dois óleos sobre painéis de madeira dedicados à resistência civil espanhola e à sua produção clandestina de pólvora e munições.
Se a série baseada em Goya nos recorda inevitavelmente a longa tradição artística de «ter a dor e o prazer de copiar constantemente as obras realizadas pela mão de grandes mestres» (Cennino Cennini, The Book of the Art. A Contemporary Practical Treatise on Quattrocento painting), as imagens de Jacinto resultam de um processo altamente incomum ancorado no fenómeno temporal e espacial da estratificação ao acaso de materiais e sedimentos. Na realidade, a reprodução da pintura de Goya em página dupla (spread) permaneceu no chão do atelier de Jacinto durante anos. No meio de pó e de sujidade, a imagem impressa mudou gradualmente com a acumulação do pó do carvão e dos pastéis, entre outros resíduos. Formando depósitos pretos, cinza, brancos e ricos em cor, recobrindo progressivamente as figuras humanas que aparecem no cenário de Goya, o processo continuou até elas terem desaparecido por completo.
Foi precisamente esta imagem esvaída – ainda persistente – que cativou o olhar do artista. Representando a um tempo a operação secreta de produção de pólvora levada a cabo por Palafox nos campos de relvados luxuriantes, de vegetação rasa das reservas florestais de Aragão, outros pós vieram invadir a visão de Goya sobre os desastres e os preparativos da guerra. Desta lenta irrupção emergiu uma visão contemporânea e atormentada de paisagens expressivas e melancólicas maioritariamente a preto e cinzento, desprovidas de presença humana, que encerram ressonâncias trágicas óbvias.
Hoje, ao olharmos para as reproduções das pinturas de Goya no atelier de Jacinto, que ainda permanecem no chão do amplo espaço por entre muitos pincéis, materiais de arte, livros, imagens impressas, telas em curso e desenhos do artista, só se podem aperceber sedimentos. A visão de Goya é agora totalmente inalcançável. Metamorfoseada numa espécie de deserto longínquo, ecoando constelações e dispersão de pó interstelar, talvez revele o distanciamento inexorável e impiedoso de todas as coisas. A não ser que manifeste o processo de criação da vida na qual tudo é continuamente gerado e transformado, desde as imagens e a memoria à consciência humana.
Katherine Sirois
Trad. NMP
Desenhos: de João Jacinto. Dimensões: 150 x 220 cm (irregular). Data de realizaçäo: 2017
Imagens: Pedro dos Reis. © João Jacinto Studio