Uma das particularidades do movimento Fluxus, na década de 1960, foi a escrita de composições musicais em prosa, e musicais mesmo em situações que acabavam por não resultar em música propriamente dita, mas em performances de grande efeito teatral. Nesses rituais, eram sistematicamente derrubados os mais sacralizados postulados da cultura erudita e do convencional conceito de espectáculo. Aqui fica a minha homenagem a esses «antimúsicos», numa série de partituras que têm o violino, ícone máximo do classicismo, bem como ensembles de cordas de arco, como destinatários.
1. Impromptus (para orquestra de cordas)
Vistam-se a rigor, de casaca e colarinho branco ou vestido de noite.
Afinem todos os instrumentos da orquestra ostensivamente e preparem-se para tocar, colocando-se em posição erecta nas cadeiras.
Façam um momento de preparação antes de começarem.
Depois, não toquem: durante 20 minutos, mantenham-se totalmente imóveis e silenciosos. No final, desafinem os instrumentos com igual teatralidade.
2. Scraping (para violino percussivo e sampler)
Tire todas as cordas do violino e desmonte-o totalmente sobre uma mesa de madeira na qual tenha colocado microfones de contacto.
Manipule os pedaços de madeira que formavam o instrumento de forma a produzirem som, entrechocando-os ou esfregando-os uns nos outros.
Não procure estabelecer padrões rítmicos; em vez disso, explore o som natural da madeira e permita a ocorrência de imprevistos.
Com o sampler, multiplique e processe os sons obtidos até formar uma massa sonora densa, mas organizada de modo a evidenciar diferentes dinâmicas.
3. In Memoriam Jimi Hendrix
Ligue dois pickups ao violino e suba o volume do amplificador até ao máximo.
Coloque o violino no chão e ajoelhe-se diante dele.
Despeje álcool sobre o instrumento e ateie-lhe fogo.
Observe as chamas a subirem e não tente controlar o feedback produzido.
4. Silence is Popular Now (homenagem a John Cage e Bela Bartok)
Para dois violinos e CDs. Introduzam vários discos compactos virgens entre as cordas dos dois violinos, de forma a ficarem bem presos.
Procurem interpretar sucessivamente os 44 duos para violino de Bartok, deixando que os CDs vibrem.
Deixem que os sons assim produzidos cortem os fraseados, de modo a que nenhuma linearidade ou continuidade seja possível.
5. Vostell para Violino Solo
O violino deverá estar na horizontal sobre uma mesa.
Coloque um ovo cozido sobre as cordas e manipule estas de modo a conseguir passá-lo para a parte inferior das mesmas, sobre o braço.
Vá comendo os pedaços que caírem para os lados até terminar a operação, e depois ocupe-se dos que ficarem presos nas cordas.
A peça estará concluída quando a totalidade do ovo tiver desaparecido da vista.
6. Intermezzo
Coloque um violino equipado com vários captadores piezzo na horizontal, preso num torno de modo a não tocar em qualquer superfície.
Disponha dois e-bows ao longo das cordas e manipule os drones resultantes numa mesa de mistura, trabalhando a espacialização sonora (para um mínimo de quatro altifalantes).
7. Charlotte (para mulher violinista nua)
Dispa-se totalmente, pinte os mamilos e as auréolas dos seios de vermelho vivo, bem como os pêlos do púbis, e sente-se numa cadeira.
Utilize o violino na vertical e tente interpretar qualquer uma das sonatas para violoncelo de Bach.
Não faça transposições de oitavas nem se preocupe em tocar bem (homenagem à violoncelista topless Charlotte Moorman).
8. Quarteto de Cordas nº 00
Cada instrumentista deverá utilizar a sua parte de quatro diferentes quartetos de cordas de Beethoven, lidas nas estantes à sua frente, mas sem instrumentos.
Os braços e as mãos devem simular o seu uso durante toda a duração da peça, enquanto se utilizam as cordas vocais para cumprir a função.
As passagens a interpretar devem ser cronometradas, de modo a todos terminarem em simultâneo.
9. Memory Bank (para DJ digital e CD com solos de violino)
Munido de quatro leitores de CD, uma mesa de mistura e unidades de efeitos, utilize somente discos de violino solo: «Uwaga» de Mathieu Werchowski, «Sounding the New Violin» de Malcolm Goldstein, «Music for Violin Alone» de Mark Feldman, «Solo» de Leroy Jenkins, «Violin Improvisations» de Takehisa Kosugi e «Solo au Monastére des Jerónimos» de Carlos «Zingaro».
Com a reciclagem destes materiais, faça uma improvisação noise em que a sonoridade típica do violino já não seja reconhecível.
10. Longwaves (para violino e rádio)
Coloque um pequeno transístor mal sintonizado na Antena 2 dentro de um violino.
Improvise neste procurando reproduzir na medida das suas possibilidades o ruído proveniente do rádio e alguma melodia, harmonia ou ritmo mais detectável.
Se, durante a actuação, surgirem partes de locução na emissão radiofónica, acrescente também a sua voz.
11. Because it’s Winter
Calce luvas de lã grossas, vista sobretudo e coloque um cachecol e um gorro na cabeça.
Tente acompanhar ao violino as Winterreise de Schubert reproduzidas pelos auscultadores que tem nos ouvidos.
De cada vez que se enganar ou sentir que não ficou bem, repita, mesmo que fique atrasado em relação à gravação.
Sempre que se atrasar, procure fazer o trajecto com base na memória, mas resumindo-o ou tocando mais depressa até chegar à sequência presente.
12. Felatio
Improvise ao violino, de pé, vestido apenas da cintura para cima (camisa, gravata e casaco), enquanto lhe fazem uma felação.
Não procure alhear-se do que lhe está a suceder: deixe que a música seja uma consequência do que se passa no seu corpo.
Obrigue-se a continuar a tocar durante o orgasmo.
Conclua quando o seu pénis murchar… então, limpe-se e saia do palco.
13. Quarteto de Cordas nº 01
Apenas com a utilização de staccati e harmónicos (primeiro os violinos em staccato e a viola e o violoncelo nos harmónicos, depois trocando em cada minuto de duração da peça; total: 30 minutos), o quarteto de cordas terá de tocar na fronteira da inaudibilidade.
De cada vez que houver um ruído na sala, produzido pela assistência (cadeiras arrastadas, tosse, vozes, etc.: serão espalhados microfones pela sala, actuando o grupo sem qualquer amplificação), os quatro músicos devem silenciá-lo com um vigoroso «chiu», parando de tocar e recomeçando imediatamente a seguir.
Se com estas interrupções se ultrapassar o minuto de cada situação, o reatamento deverá ser já na situação seguinte.
14. Concept One
Produza apenas multifónicos com o violino (que deverá ser captado por um microfone), imaginando que este é um órgão de igreja.
Quando sentir que o que está a fazer não é suficiente para realizar os sons que idealiza, ligue um aspirador (com o pé).
Este deverá estar igualmente amplificado.
Jogue com os choques de frequências entre os harmónicos do violino e o ruído de funcionamento do electrodoméstico.
15. Mandrake (para violino e computador)
Vista-se com um fato de mágico.
Insira no computador o mais diversificado tipo de sons que lhe for possível, recolhidos por si mesmo em meios urbanos, industriais e naturais.
Dispare esses materiais sonoros com o violino e articule-os a partir deste instrumento de modo a que nunca seja possível ouvir o seu próprio som.
16. Continente
Coloque microfones de contacto em vários pontos de um estojo aberto de violino.
Manipule o estojo com um arco, ora como se o aplicasse a um violino, ora para obter sons percussivos.
Utilize delays e uma unidade de efeitos para subir e baixar oitavas.
17. Testosterona (para violinista/dançarino)
Peça para violino eléctrico com ritmo binário e compasso acelerado.
Dance o que tocar e toque o que dançar, cuidando que a coreografia dos seus pés seja totalmente autónoma dos movimentos das mãos e igualmente complexa e rápida.
18. Ambient Music
Encha o interior do violino com lixo.
Quando já não couber mais, comece a tocar, mesmo que o som do violino não seja convenientemente projectado por a sua caixa de ressonância estar impedida de cumprir com normalidade a função para que foi concebida.
Verifique que sons conseguem ter melhor recorte e concentre-se nesses, reduzindo o léxico do violino.
19. Ornette (para violino esquerdino)
Um violinista dextro tentará interpretar «Trinity», de Ornette Coleman, com o violino tocado «à canhota», ou seja, colocado do lado direito do corpo.
A peça consiste no que ele conseguir fazer (ou não conseguir).
20. Ready Made
A sala deverá estar às escuras, com os projectores a iluminar exclusivamente o violino colocado no estrado, a meio do palco.
As colunas de som emitirão unicamente o crepitar de uma deficiente ligação à terra.
21. Painting Session
A performance consiste num grupo de crianças com menos de 6 anos de idade a pintar com várias cores um violino e respectivo arco.
Um ecrã atrás amplia o que fazem.
Quando terminarem, o espectáculo conclui-se com a interpretação no mesmo instrumento de melopeias infantis.
O mesmo ecrã mostra as mãos, o queixo, o pescoço e o ombro esquerdo do violinista a mancharem-se de tinta.
22. Channel 4
Um performer vestido de padre católico realizará um exorcismo a um violino, com as exactas palavras e os procedimentos litúrgicos destinados a esse efeito.
Concluído o ritual, pegará no instrumento para o tocar e revelará a sua surpresa quando verificar que nenhum som é produzido por este.
A peça assinala a transmissão directa de um exorcismo pela estação de TV britânica Channel 4 (Fevereiro de 2005).
23. Freeman Etudes Revised
Enquanto são passadas canções em disco de música pop e uma gravação com os sons da vernissage de uma exposição de artes plásticas, interprete alguns dos «Freeman Etudes» de Cage à sua escolha.
Ao mesmo tempo, faça balões com a pastilha elástica que está a mastigar e rebente-os.
24. Obsession, by Calvin Klein
Entre no palco com o violino e respectivo arco nas mãos.
Poise o violino numa pequena mesa e comece a colocar resina no arco.
Prolongue esta operação durante 12 minutos, esfregando a resina obsessivamente e com largueza de gestos e repetindo as aplicações quantas vezes forem necessárias.
Quando o tempo de duração da peça terminar, faça uma vénia de agradecimento, pegue no violino e saia do palco.
Já fora da vista do público, toque uma única frase de seis notas com vibrato acetinado e redondo.
Procure que esta frase tenha um carácter definitivo, mas que não pareça uma conclusão.
25. Concept Two (instalação de cordas para 10 performers)
Disponham-se cordas de piano, cravo, contrabaixo, violoncelo, harpa e guitarra em toda a extensão do espaço destinado à performance/instalação, afinando-as segundo os princípios da just intonation.
Os 10 executantes devem manipulá-las com arcos de violino em jogos tímbricos integrados que abranjam o maior leque de cores possível.
26. Spot
Prenda o seu violino num alvo e coloque microfones de contacto em ambos.
À distância regulamentar do tiro com flecha desportivo, e enquanto dois outros violinistas mantêm um drone com ênfase cinematográfica, dispare um arco de violino contra o instrumento tal como se fosse uma flecha.
Os violinos acompanhantes devem parar no exacto instante do embate.
Prolongue o som deste o máximo que puder, por meios electrónicos, e trabalhe-o ao nível da modulação.
Ao desvanecer-se, a operação terá de se repetir até o violino ficar totalmente destruído (se for o arco a partir-se, deverá ser substituído quantas vezes forem necessárias).
27. Preparação
Coloque quatro pinças metálicas e quatro molas de roupa de plástico, intercaladamente, em cada uma das cordas do violino, cuidando que deixa os espaços necessários à utilização do arco em toda a largura da disposição das mesmas.
Toque o mais rapidamente que for capaz com esta preparação.
Faça com que a estrutura rítmica da peça, que deve ser sugestiva mas não estar em primeiro plano, não coincida com as pulsações originadas pela vibração dos objectos em causa.
Deixe viver as polirritmias resultantes.
28. Le Monde
Embrulhe o violino e o arco em várias folhas de papel de jornal (retiradas do diário francês Le Monde).
Aplique o arco no violino até conseguir obter sons à medida que o papel se for rasgando.
A peça termina quando todo o papel de jornal tiver caído e a «normalidade» da execução musical ficar restabelecida.
29. Wireless (para violino sem cordas)
Retire as cordas ao violino.
Invente uma forma de fazer este soar com o arco sem a sua presença – pode utilizar microfones de proximidade ou mesmo de contacto, para maior evidência de algumas das situações, mas não descure as dinâmicas e uma articulação por vários níveis de volume.
Não tente produzir sons percussivos (seria demasiado óbvio).
30. A Grande Arte (homenagem a Rubem Fonseca)
Produza os sons mais agudos que puder no violino e sempre numa progressão de sustenidos.
Utilize uma faca (afie-a antes cuidadosamente numa pedra-pomes) em vez do habitual arco.
31. Joker (para quarteto de cordas)
A composição de base da performance é o segundo quarteto de cordas de Brian Ferneyhough.
Preparem-se quatro cartas, sendo que uma delas deve ser um joker.
Os membros do quarteto terão de escolher uma carta cada um.
Aquele a quem calhar o joker terá de fazer um pequeno golpe em todos os dedos da mão esquerda, excepto o polegar, com uma lâmina, e tocar com este preparo.
Está-lhe vedado desistir, mesmo que não consiga interpretar a peça convenientemente (e decerto não conseguirá).
32. Paganini Interface
Tente interpretar os Caprichos de Paganini com uma cruz de madeira de proporções adequadas no lugar do arco.
Segure na cruz pela ponta de cima, de modo que a sua aplicação no violino faça com que a mesma surja invertida aos olhos da assistência.
A execução consistirá no que puder fazer, nada mais, e se fizer pouco, tanto melhor.
33. Bandera Negra (para quatro violinos)
Interpretem um meddley de vários hinos anarquistas (à escolha) e toquem-nos nos quatro violinos (cada um com materiais diferentes dos restantes – o ideal será que quatro hinos, ou o que deles se fizer, possam soar em simultâneo) fragmentando fraseados, introduzindo dissonâncias nas melodias, executando-os com outros tempos, alterando-lhes (ou retirando-lhes) a tonalidade, etc.
Ou seja, utilizando um leque variado de técnicas e procedimentos que subvertam os materiais a utilizar, sempre com o cuidado de ouvirem o que os outros fazem e aplicando a noção de que cada contribuição é apenas parcial, parte de um todo.
Cada violinista deve estar ciente de que não tem de dizer tudo por si só, mas apenas aquilo que lhe compete, pelo que deverá ser económico na produção sonora, dar espaço aos outros e integrar-se na construção global sem seguidismos.
Por exemplo, não indo atrás de uma ideia que surja a um dos seus parceiros.
A performance destina-se a promover o sentido da responsabilidade pessoal e colectiva numa situação de liberdade contratualizada.
Se o espírito colectivo falhar, falha a performance (o que também é de considerar um resultado legítimo).
34. Speech
Desenvolva uma improvisação particularmente «retórica» ao violino, com intervalos curtos e um carácter gestual.
Ao mesmo tempo, fale com o público, tente entrar em diálogo com este, conte-lhe histórias, pergunte algo directamente às pessoas, responda-lhes.
«Palavroso» tanto a tocar como a falar, procure que, apesar dessa coincidência, música e fala se processem em âmbitos distintos, como se quem toca não fosse quem conversa e vice-versa, mas dois indivíduos diferentes.
Faça-o de modo a pressentir-se que há uma incongruência naquilo que acontece, embora não seja possível detectar-se exactamente porquê, como nos espectáculos de ventriloquismo.
35. Mind the Gap (para violinista amarrado)
Amarre os pés à altura dos tornozelos, mas de modo que consiga deslocar-se.
Entre no palco a tocar, com passos lentos e curtos.
Toque sempre em movimento e vá aumentando a velocidade dos passos.
A actuação termina quando tropeçar e cair, altura em que se deve ouvir uma gravação feita no metro de Londres do aviso sonoro «mind the gap».
Esta deve estar em repetição até o violinista ser ajudado a levantar-se e levado do local (as pessoas que o fizerem devem colocar-lhe uma manta sobre os ombros e apoiá-lo uma de cada lado, como faziam a James Brown quando este entrava em transe e era retirado do espaço de actuação).
36. Headbangers
Coloque-se um quarteto de cordas a interpretar Wolfgang Rihm na primeira parte de um concerto de heavy metal.
O mesmo deverá tocar impassivelmente, sejam quais forem os objectos que lhe atirarem da assistência, e só lhe é permitido antecipar o final da sua actuação se os quatro instrumentistas levarem com garrafas na cabeça (e isto se precisarem de assistência médica) ou forem agredidos por alguém que suba ao palco...
37. Phantom (para violino solo e reservatório de água)
Jogue com a ressonância do local de maneira a que todo o espaço acústico seja ocupado, com sobreposição de camadas sonoras e choques de frequências que tenham como consequência a produção de sons-fantasma, sons que não foram tocados pelo violinista mas pela própria arquitectura.
Procure que estes sons «afoguem» os seus.
38. Flag: Burning (homenagem aos Wire)
Para violino solista e banda filarmónica em cerimónia de Estado. Interpretem o hino nacional de trás para a frente, acompanhados por uma projecção vídeo em que se veja a bandeira de Portugal a arder.
No final, o violinista deve convidar os presentes (idealmente figuras do próprio Estado, Presidente da República, governantes, deputados, dirigentes partidários) a processarem-no judicialmente, isto se desde logo não tomaram a iniciativa de chamar a polícia.
39. Fetiche
Forme-se uma pilha alta de violinos no centro do palco.
Os performers, homens e mulheres, inteiramente nus, deverão rodear a pilha, deitados no chão, sentados ou de joelhos, e masturbar-se, fitando-a sem nunca desviarem os olhos.
Os únicos sons na sala serão os produzidos pelos próprios executantes durante a acção, captados por microfones dispersos pelo espaço.
A performance termina quando todos atingirem o orgasmo.
Os que se aliviarem primeiro devem esperar pelos retardatários (podem fumar, fingir que dormem, ler uma revista...).
40. Reforma Agrária
Enterre um violino em terra negra até todo o braço do mesmo ficar coberto.
Componha a terra e misture-lhe adubo e fertilizante.
Regue copiosamente e depois espere que nasçam ramos no instrumento.
Se nada acontecer até cinco minutos depois, manifeste a sua impaciência e abandone o local da actuação com esta frase: «Vou buscar outro violino à cooperativa. Este não toca.»