A Europa como realidade geopolítica, social e cultural significa muitas coisas para muita gente, sobretudo os próprios europeus. Durante algumas décadas do pós-Segunda Guerra Mundial significou um projecto de entendimento e entreajuda entre parceiros cujo exemplo fascinava – ou pelo menos interessava – os vizinhos. O crescimento do projecto levou-o a confundir-se com o nome do continente. Mas a Europa é mais ampla, móvel e contraditória do que qualquer estabilidade esperançosamente dinâmica, e de qualquer forma não tem no ADN o entendimento a todo o custo.
É uma Europa menos idealista e harmoniosa a que tem vindo a manifestar-se claramente nos últimos anos, um continente que ultrapassou a Guerra Fria mas que nunca se chegou a unir em torno de uma ideia genuína de identidade europeia. Irá ainda a tempo de o conseguir, mesmo com uma UE em retracção? Para isso deveria constituir-se como uma realidade maior e mais inspiradora do que a dos interesses económicos que hoje a condicionam. Uma realidade maior do que as suas fronteiras políticas (que por via do Cazaquistão tocam a China), físicas (da gigantesca plataforma continental portuguesa à extensão complexa dos Urais) e mentais (da insularidade anglo-galesa ao pânico leste-europeu de receber imigrantes).
A realidade da Europa que hoje vemos não cumpre essa dimensão. Ela antes faz recordar um passado deplorável (estamos em pleno centenário da Guerra de 14-18, o seu segundo conflito mais mortífero) e o ainda-ontem da desagregação jugoslava. Reequacionar a Europa hoje é sentir-lhe esse regresso, se não o do continente agressivo-suicida de inúmeras guerras no próprio solo e alhures, pelo menos o do provincianismo desconfiado e hostil que volta e meia ressurge espectacularmente na sua História. Conviria não nos deixarmos raptar por ele e, respirando fundo (ou em alguns casos tapando o nariz), perder algum tempo a pensar em como poderemos abrir outras possibilidades (além das horríveis, que também se vão abrindo) para o futuro deste canto do mundo, acolhedor e agreste, no qual possuímos memórias e investimos sonhos, ou pelo menos isso nos asseguram monumentos, museus e múltiplas «thecae» que os acumulam e no-los mostram – se repararmos.
A Europa regressa com a sua questão de sempre: se damos por ela, se ela faz sentido – como lugar onde criar alguma coisa, de preferência com os outros, mais do que lugar onde vamos estando, o que não sendo sempre fácil, também não é um desafio fascinante. A menos que chegue o raptor.
Marcelo Felix