Um peão – eu – à frente de uma passadeira é como um semáforo vermelho para os condutores; quer dizer, a paragem não é facultativa – é uma obrigação tão limpa como aquela luz redonda e escarlate. Ainda assim, sempre que os carros param, eu agradeço. Agradeço com um gesto – a palma bem estendida dirigida ao condutor. Os nomes – as palavras – são como luvas que cobrem as coisas (V. Luiselli); quando agradeço na passadeira, faço-o com uma mão coberta pela luva do obrigado.
O gesto é a transfiguração de uma parte de um corpo num significado – gerere quer dizer vestir, trajar, transportar; é uma espécie de máscara significativa. Linguagem gestual é um pleonasmo, tal como capitalismo selvagem ou papel vegetal ou coração intestino – almoçar uma mousse, seguir um cego, semear num cemitério, incitar à citação, carpir a carpete, tapar um tapete, roubar um robalo, o leque e a raquete.
Um dedo a apontar não é apenas um dedo esticado, é uma seta a dirigir o olhar alheio. (Diz-se que quando o dedo aponta para o céu, o idiota olha para o dedo. Mas, precisamente, deve-se olhar também para o dedo, para ver quem nos quer dirigir a atenção.)
Imagino que estejas parado a ler isto, tal como parado eu estou a escrever, embora alguns meses antes deste teu dia. Os teus olhos passam de palavra em palavra tentando acompanhar o texto, como se este estivesse a escapar pela direita, na vã esperança de isto no final fazer algum sentido. Ler é um gesto?
Há gesto ou pose.
A pose intermedeia os gestos; entre os gestos instala-se a pose; todo o gesto acaba em pose; toda a pose acaba num gesto. Mas não é só o gesto que é potente, que é potência, que é movimento, intenção, vida; a pose – a prostração, a inacção – também pode mudar o estado de coisas. A greve, por exemplo, da qual o epítome será a greve de fome – não fazer nada, nem sequer se alimentar. A minha morte tem mais poder que a minha própria vida. Não fazer, eis o gesto de Bartleby; pause, pose.
Mas o imobilismo de um pássaro pousado – aquela pose breve – é diferente do da pedra, embora a pedra seja ela mesma algo a acontecer, um acontecimento, embora bastante longo e lento, um pouco aborrecido (C. Rovelli). O aspecto mineral da pose e a leveza etérea do gesto. Lembro-me do texto sobre o pó no dicionário de Bataille – «[o]s contadores de histórias não perceberam que a Bela Adormecida teria acordado coberta por uma espessa camada de pó; nem imaginaram as sinistras teias de aranha que teriam sido rasgadas no primeiro movimento das suas tranças ruivas», ou seja, no seu primeiro gesto.
Há gesto ou pó.
Filipe Pinto