Entre nós e o mundo, entre nós e todas as coisas do mundo, inclusive entre nós e as nossas ideias e pensamentos, está a linguagem. A linguagem está sempre no meio; o lugar da linguagem é, precisamente, o intervalo. A linguagem é uma espécie de segunda pele com a qual cobrimos todas as coisas – um exoesqueleto –, tentando torná-las inteligíveis, comunicáveis, transmissíveis. Com a linguagem surgem novas questões e problemas – a verdade, por exemplo; a verdade é uma muito peculiar relação entre um acontecimento e o seu relato, ou seja, a linguagem. A linguagem também permite o exercício do rememoramento, mas sabe-se que, na verdade, é o esquecimento que finalmente preserva as coisas. A linguagem acontece de nós para as coisas e não das coisas para nós. Referimo-nos, aqui, à linguagem falada e escrita, como se percebe no nome do tema deste número – linguagrafia –, muito bem achado, concretamente dir-se-ia, pelo Paulo T. Silva. O nome, portanto, não brota das coisas; nós criamos e colamos o nome às coisas. A ligação entre as palavras e as coisas é aleatória – todo o significante é flutuante. Palíndromo não é um palíndromo; cedilha não tem cedilha; analgésico nunca é um supositório. Dada a artificialidade congénita da linguagem, por vezes não sabemos bem o que determinado nome quer dizer, que coisa nomeia, o que, afinal, esta linguagem humana está a querer dizer; quando tal acontece, interpomos um dispositivo entre nós e a linguagem – o dicionário. Sento-me com um dicionário e procuro a definição de dicionário; melhor, descubro a definição de definição; em mise en abyme.
Filipe Pinto