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Primeira Parte
Eu cá digo: sou um homem. E digo mais: sou um gigante. E ainda mais: um gigante de ideias fixas. Um homem enorme, de metro e cinquenta e cinco, com cabelo no couro cabeludo, colarinho branco na camisa, nariz tendencialmente inclinado para a vitória, relógio vistoso, pura prata, fatos invejáveis, pernas, duas, por enquanto, e um insaciável apetite para espezinhar quem se insinua meter-se à minha frente. Eu: um virtuoso na arte de personificar a ambição do homem e o que este tem de abominável. Tudo dotes que me ultrapassam e que, sem esforço, numa máquina giratória e versátil de contabilizar as horas, ultrapassam simultaneamente os séculos, os anos, e até os milésimos de segundo praticamente instantâneos. O passado, o presente e o futuro fundem-se num só ponto redondo, em tudo semelhante a uma bola de futebol, para me verem em acção. E eu, um homem, um gigante, desfrutando da minha arte, pontapeio o tempo para o campo contrário, para junto dos meus adversários. E torno-me aqui mesmo neste homem intemporal.
O destino, mal vim parar a este mundo, olhou para mim com cara de bons amigos, e anunciou: subirás concentricamente, numa espiral serpenteante, rumo ao sucesso, onde o centro é o ponto mais alto do universo. Chegar ao topo do universo é a minha primeira ideia fixa. Apareceu muito antes de conseguir pronunciar as palavras papá e mamã. O que terá nascido primeiro, interrogo-me frequentemente, eu dentro do ventre da minha mãe, ou esta ideia fixa dentro de mim?
Se tenho algo que realmente me pertence (e se me pertence, faço questão de a levar comigo, diariamente, ao sopé da minha importância), é a confiança. Daí, posso olhar de cima todos os que me cercam, independentemente da sua estatura. Tenho um colega na minha empresa que não pára de crescer. Vai no metro e noventa e oito e ainda só lhe conheço a sutura sagital (o topo mais alto do seu crânio cónico), que fica muito lá em baixo, à altura da sua insignificância. Por duas ou três vezes cheguei a brincar com ele usando a ponta das minhas unhas.
Em suma: durmo que nem um anjinho, depois de uma má acção.
E quando adormeço, acontece-me, esporadicamente, algo de mau – dou por mim a sonhar coisas bondosas. Razão mais do que suficiente para me levantar com aquele sabor amargo de quem teve sonhos repletos de ideias estupidamente generosas e fofinhas. Estes sonhos adoram insinuar-se, dar nas vistas, e não perdem uma oportunidade para se pendurarem nos meus membros ensonados. Levantam-se comigo, chatos e pegajosos, acompanhando-me em filinha indiana, alegres e barulhentos. Ah, merdosos, não acredito em vocês. Conseguem dizer-me então por que continuam a acreditar em mim?
Os sonhos bondosos abominam o movimento, sobretudo o esforço aeróbio. São oito e meia, hora de correr comigo para correr com eles, estes minorcas gorduchos indesejáveis.
Visto o fato de treino, simulando um assobio animado, e enfio-me no pinhal junto ao condomínio onde moro. Corro sempre com um pé à frente do outro. E nunca suo. Posso passar uma semana ininterruptamente no deserto do Namibe a correr e nem uma pinga de suor avistarão neste corpinho. Aos sonhos bondosos e fofinhos, por sua vez, basta pensarem no movimento secular de uma estátua para suarem desalmadamente. Largam água constantemente. Cada um dos seus poros é uma torneira, felizmente esgotável. Por natureza, os sonhos são objectos inúteis (um fastio, um enjoo de beleza) sem um milímetro de resistência. Ao fim do terceiro quilómetro de corrida já me livrei deles: ficaram todos para trás, sem pio e sem vida, deixando a superfície do meu subconsciente finalmente livre e limpa de toda a sujidade. Ao quinto quilómetro aumento a passada: não tarda nada as ideias, as úteis, aparecerão. É em pleno movimento que as minhas ideias fixas surgem. Hoje apareceram-me quatro: humilhar a minha secretária, ser novamente promovido quando o meu colega Roger Vailland entregar o estudo estatístico ao chefe, apanhar uma grande bebedeira, e levar a irmã de Roger Vailland para a cama.
A vida e o dia podem, portanto, com a devida cerimónia, começar. Aqui me têm, camaradas. Estão preparados para receber este vencedor? Aqui vou eu a caminho, esmerado, minuciosamente apresentável. Olhem para mim que eu farei os possíveis e os impossíveis para não olhar para ninguém.
Mal entro no meu escritório, fico sozinho. É agradável olhar para mim quando estou sozinho, e dizer: és um verdadeiro sucesso, na tua empresa. Em dois anos tens subido mais rápido que a própria ideia de subida.
Depois chamo a minha secretária, e, num ápice, deixo de ficar sozinho. Ela entra cheia de medo. Medo do quê? De quem?, digo-lhe, e estendo-lhe a mão. Receba esta flor, tem sido uma funcionária exemplar. Ela apanha-a, corando e inchada de comoção. Dois minutos depois volto a chamá-la e transmito-lhe a minha indignação, mostrando-lhe a chávena: é café que se apresente? Veio frio, com borras e sem o segundo pacote de açúcar. Acha-se digna deste trabalho que lhe concedi por misericórdia, acha? Não se pode oferecer o dedo, que nos comem logo o braço. Sinceramente, nem da vida é digna, mulher. Traga-me a papelada que ainda não lhe pedi, urgentemente. E quando ela ia para dizer, qual papelada?, fiz-lhe o meu olhar fulminante e disse-lhe, cale-se, desgraçada!, e ela saiu a chorar num pranto, pensando que acabara de perder o emprego. Avisei pelo telefone que o estudo de marketing tinha de estar na minha mesa em menos de dez minutos. E que Roger Vailland teria de estar sentado à minha frente dali a um quarto de hora. Ela assoou-se, aliviada. E eu rematei: e daqui a cinco segundos estarei a beber o meu merecido café, certo?
Uma pessoa com ideias fixas tem uma tendência inata para que a vida lhe corra como o planeado: bebi o meu café a ferver, o estudo feito por um novato competente escolhido por mim a dedo levou com a minha assinatura, e o pobre do Roger Vailland, mal lhe falei do nome da sua amante, não teve outro remédio – saiu dali directamente ao último andar, para ser recebido pelo tio, anunciando, com provas firmadas num estudo de marketing, que eu era uma maravilha, um anjo caído do céu para a empresa e que, se me dessem asas, a empresa, em pouco tempo, descolaria da mediocridade.
Para festejarmos a minha promoção a coordenador principal de área, partimos ao final da tarde, eu e Roger Vailland, rumo ao bar onde (com um toque aqui e outro ali), acabou por confessar ser hábito encontrar-se com a sua irmã. Não estava a mentir. Portou-se bem. Ficou convencido, coitado, que com estes dois favores, estaria livre de ser feito em fanicos pela sua mulher, mal esta soubesse da amante. Tenho pena dele, nem com esforço consigo imaginá-lo às postas. Mas nunca se sabe se a sua linda amante um dia não me será útil.
Por agora, a sua irmã serve. Lá estava ela, sempre armada em importante. Um encanto! Uma beldade! Um raro exemplar de graciosidade. Um jeito inato para nos abanar as ideias. Comecei imediatamente a tremer da braguilha. É incrível como consegue aguentar aquela pose distinta, indiferente aos olhares predadores de qualquer homem, como se estivesse ininterruptamente a anunciar «olhem como sou misteriosa». Mas eu não sou um homem qualquer. Sou um gigante de ideias fixas. E como veio ao caso esta matéria das ideias fixas, lembrei-me de avançar com a ideia da grande bebedeira: pedi um whisky duplo, tirei o chapéu (imaginário) à bebida e pus-me a fazê-la escorrer garganta abaixo sem grande vontade. Ao quinto whisky, comecei a ter sede. E dali para a frente foi sempre a crescer. Quanto mais bebia mais sede tinha. A certo ponto (num ponto sem retorno), não era eu que ia na direcção da minha grande bebedeira. Era a grande bebedeira que, por mais imóvel que tentasse ficar junto ao balcão, vinha num balanço irreparável, na minha direcção. Mal me abalroou, ouvi, muito lá ao longe, uma voz (que estava na realidade mesmo ali ao lado) a chamar por mim. Puxei o queixo para cima e ao virar-me, vi, não um, não dois, nem três homens iguais. Tal era o meu estado que via a quadruplicar alguém exageradamente magro. De frente parecia estar de lado. De perfil, nem parecia. René Daumal, apresentou-se. Pode passar-me, se me puder ser útil, disseram os quatro com educação, esse pratinho de tremoços para acabar com esta fome inútil? Peguei atordoado no pratinho e, ao voltar-me para esse René Daumal, paralisei: qual dos quatro seria o original? Ao procurar a resposta, encontrei uma pergunta maior: por detrás dos quatro, espreitavam mais dois seus semelhantes. E atrás destes, outro par. E outro. E outro. E assim sucessivamente, até ao infinito. Estaria, este crânio encharcado em álcool, a produzir um delirante jogo de espelhos?
Segunda Parte*
Fixei-me num René Daumal ao acaso, à sorte, e começámos uma conversa visualmente intermitente (quando estava de frente para mim, tornava-se simples fixá-lo. Quando se virava de perfil, puf, desaparecia. E a sua voz, até ele resolver pôr-se de frente, ficava por ali, meio perdida, agarrada a algo ou a alguém invisível):
– Anda à procura de quê, de problemas? – disse-lhe, meio tonto – Pode ir à sua vidinha. À primeira vista, não me parece ser de grande utilidade nem para a minha pessoa, nem para as minhas ideias fixas.
– Jovem, está a fiar-se demasiado nas aparências.
– Por estas bandas, está a deitar o seu tempo para o lixo.
– Você tem alguma utilidade para mim. Não estou a perder tempo.
– Diga-me, então, em que lhe posso ser útil, que não o serei, com todo o prazer. O que anda por aqui a fazer, tirando chatear os outros?
– Eu, meu caro, sou toda uma história. Estou aqui em reportagem. Finjo estar atingido pelo mal de que vocês sofrem, apenas para estudar-vos melhor. Depois, vou publicar um relato sensacional desta viagem. Vai chamar-se (e neste ponto do discurso aproximou-se mais do meu ouvido) A Grande Bebedeira. Nela, vou mostrar o pesadelo dos desamparados que tentam sentir-se um pouco mais vivos, mas acabam por cair na embriaguez, por falta de rumo, embrutecidos por bebidas que não refrescam. Resumindo, como dizia o sábio Oinófilo, «enquanto a filosofia ensina como o homem pretende pensar, a bebedeira mostra como ele pensa». E eu estudo pessoas como o senhor: os fabricadores de objectos inúteis.
– ?
– Aos fabricadores de objectos inúteis, como o senhor, tudo lhes serve para fabricar. Cheguei a encontrar alguns que até conseguiam tornar inutilizáveis as coisas mais úteis.
– Exemplos.
– Muito perto daqui, vive uma colónia de cultivadores que produzem batatas com o objectivo de se alimentarem para terem a força necessária ao cultivo de batatas. Outros puseram-se a construir casas e, depois, tiveram de inventar homens mecânicos para as habitarem, depois fiações para vestir os autómatos, depois outros autómatos, para fazerem as fiações funcionar, depois casas para albergarem esses autómatos... resumindo, este mundo anda todo numa febre de actividade, num tal entusiasmo de trabalho, que dificilmente se conseguem trocar mais de duas palavras com o menos atarefado deles.
– Pergunto: e porq...
– Se alguma vez pronunciar em voz alta a palavra «porquê», não sai daqui vivo.
– Dê-me um aperto de mão, e siga o seu rumo. Prometo que daqui a três minutos nem eu nem você se lembram do que aqui foi dito – e afinei a minha atenção na minha próxima ideia fixa, a mulher que tinha de levar para a cama.
– Os fabricadores de objectos inúteis têm um grande desprezo pela vida corporal. Consideram inofensivos os que produzem objectos que apenas servem para essa mesma vida corporal. Só há uma categoria de humanos que eles não suportam e estão sempre prontos a lacerar, matar à fome, esmagar, ou insultar, são os fabricadores de objectos úteis-de-outra-forma, os raros sobreviventes daqueles a quem, em séculos passados, se chamava de artistas. Mas estes só se aventuram por estas paragens em carros blindados.
– Você faz-me rir.
– Então, então, não seja ingénuo. Toda a gente gosta de rir. Até os polvos gostam que lhes façam cócegas.
– Sei tudo, sou um gigante, mas não compreendo nada do que diz.
– Perfeito. Está no caminho correcto. Não compreender, não ser. Não ambicionar grande coisa. Com esta multidão a querer ser alguma coisa, como é possível que este mundo não fique cheio? Como desaparecem os excedentes? Pois, se neste mundo ninguém vive verdadeiramente, também ninguém pode morrer, não é verdade?
– Sermos alguma coisa é determinante. Ou não é?
– Também me questionei a esse respeito. Vou responder-lhe, já que me faz a pergunta. Mas o que vou dizer-lhe tem de ficar entre nós. Haverá alguma coisa mais reconfortante do que concluirmos que somos menos do que nada? – E voltou a insistir com um descaramento desavergonhado. – Não se esqueça, enquanto a filosofia ensina como o homem pretende pensar, a bebedeira mostra como ele pensa. Concorda agora comigo?
Raios, aquela frase, inexplicavelmente, tinha-me tocado mais do que os oito whiskys. Compreendi isso quando dei por mim a dizer em viva voz:
– Só quero sair daqui, desta grande bebedeira. Voltar. Saltar a minha vinda a este bar. Acordar no lugar de onde tinha vindo. Voltar também para mim. Aparecer em casa num estalar de dedos. Isto é o que a minha bebedeira diz.
René Daumal escutou-me atentamente. Assentindo, esticou o braço, aproximando a mão do meu ouvido, e, num estalar de dedos, surgi na minha casa, na minha cozinha, sentado diante da minha mesa.
Sou um homem, pensei. Sou um gigante. Uma pessoa de ideias fixas e uma dor de cabeça do tamanho de um melão. E como, como não fui capaz, lembrei-me com frustração, de levar para a cama a irmã de Roger Vailland? Nada que não se possa remediar, pensei, se substituir essa ideia por outras pequenas coisas. E como estava cheio de sede, uma sede de água, enfiei na cabeça a bela ideia fixa de beber água. Pensei na minha mão e na sua utilidade caso alcançasse o copo que tinha à frente. Mal o agarrei percebi que o copo estava colado ao tampo da mesa. Depois tive a ideia de ir buscar outro copo, mas os dedos, por mais que os puxasse, estavam presos ao primeiro copo. Então tive a ideia útil de me pisgar dali. Tentei com todas as minhas forças erguer-me. Impossível: o rabo teimava em não sair da cadeira, os meus pés não saíam do chão, a minha outra mão não saía da minha coxa. Os olhos, fechei-os, e não consegui voltar a abri-los. A luz apagou-se. Está escuro, por aqui. Onde permaneço preso há anos nesta ideia fixa de escuridão.
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* Grande parte das falas da cena do bar, na segunda parte deste texto, foram retiradas do livro A Grande Bebedeira, de René Daumal (Dois Dias Edições, 2017).