Em Fevereiro do ano passado, a comunidade internacional das artes despediu-se do grande artista Jannis Kounellis.
Foi há já vinte anos que a nossa turma da Kunstakademie Düsseldorf, onde Kounellis ensinou de 1993 a 2001, viajou com ele para Salónica, para um workshop de arte. Esta iniciativa foi a minha primeira tentativa, a par do meu trabalho como artista, na criação de uma plataforma de colaboração e pesquisa artística. Agora, olhando para trás, parece-me que a reivindicação do nosso projecto ainda é relevante: como criar condições para a liberdade artística no contexto dos esforços colectivos de uma comunidade efémera.
Iniciei os meus estudos no ano de 1991, na Kunstakademie Düsseldorf, depois de mudar-me da minha terra natal, Salónica, na Grécia, para a Alemanha. Tendo invariavelmente questionado as realidades prevalecentes do mundo da arte de Salónica, senti a necessidade de sair. Eu acreditava que poderia ganhar uma melhor compreensão de mim própria e do meu lugar no mundo se me mudasse para outro lugar. Queria aprofundar e melhorar as minhas explorações artísticas, colocar o meu trabalho num contexto crítico mais amplo e aperfeiçoar e elaborar os meus argumentos e reivindicações artísticas.
O movimento constante entre o familiar e o não familiar outro lugar, resultou num intercâmbio contínuo entre o ‘Eu’ e o ‘Outro’, até que o ‘Outro’, o estranho, era eu mesma. O ‘Outro’ com quem entrei em contacto no novo lugar era uma multidão de quinhentos outros. Este ‘Outro’ não era, e nunca poderia ter sido, uma entidade indivisa ou uma comunidade uniforme. Este ‘Outro’ éramos todos os quinhentos de nós que enchíamos as galerias da Kunstakademie, trabalhando e criando, num espírito de acordo e desacordo, de compromisso e contenção. Embora alguns de nós tivessem assumido o papel de advogar por um país, etnia, tradição ou religião, todos estávamos, ainda assim, a apostar, e activamente empenhados, numa prática cujos motivos, princípios e problemas partilhávamos.
Em 1995, apresentei ao Comité de Arte da organização de Salónica Capital da Cultura '97 uma proposta para montar e dirigir um workshop para jovens artistas, estudantes da Kunstakademie Düsseldorf e da Escola de Belas Artes de Salónica. E propus também Jannis Kounellis, à época meu professor, como supervisor do workshop. A ideia central do projecto era a de que todos nós, vindos de culturas, tradições e práticas diferentes, nos encontraríamos num determinado espaço e tempo para produzir uma série de trabalhos que seriam exibidos numa exposição colectiva. A proposta foi aceite e, ao finalizar o acordo, comecei a pensar e a delinear os termos deste encontro.
Jannis Kounellis sugeriu ser eu a fazer a lista de participantes da Kunstakademie. Os meus critérios-base de selecção foram a qualidade do trabalho dos artistas; as suas ideias sobre as dificuldades e os desafios enfrentados pela arte enquanto tal; o seu trabalho com diferentes media artísticos e a utilização de diferentes estratégias artísticas. Os participantes da Escola de Belas Artes de Salónica foram seleccionados pelos seus professores.
O grupo final consistia em 32 alunos que eram não só de duas escolas diferentes, mas também de uma série de diferentes países (Áustria, Chipre, Alemanha, Grécia, Itália, Sérvia, Coreia do Sul e Suíça).
A Kunstakademie Düsseldorf é uma prestigiada escola no coração de uma das maiores áreas metropolitanas da Alemanha. A Escola de Belas Artes de Salónica está situada numa cidade com uma longa e notável história e poderá ainda vir a desempenhar um papel importante na ‘periferia’ do mundo da arte. As duas escolas diferem em termos de cultura académica, política educativa e direcção artística. O conceito de ‘academia no contexto do sistema educativo alemão visa mais remeter para a liberdade de exploração e pesquisa artísticas do que designar espaço de estudo de acordo com as normas de uma determinada disciplina. Os estudantes da Kunstakademie, vários dos quais haviam completado o núcleo da sua educação artística em outros países, tinham experiência em workshops e exposições e estavam familiarizados com os desafios e dificuldades que um projecto deste tipo coloca aos seus participantes.
No planeamento do workshop, o meu principal objectivo era, tendo em conta as consideráveis diferenças de abordagem relativamente a práticas e debates artísticos, criar condições para que a participação de ambos os lados pudesse ter lugar mais em pé de igualdade. Com isso em mente, comecei a trabalhar com todos os participantes do projecto, em especial os do lado grego, um ano antes do dia de abertura do workshop. O primeiro passo foi apresentar o trabalho de cada participante a todos os demais, de modo a que se familiarizassem, tanto quanto possível, com as respectivas semelhanças e diferenças dos seus trabalhos. Além disso, tentei promover e incentivar o intercâmbio de ideias e um espírito de colaboração e trabalho colectivo. Dado que, em última análise, a razão e propósito de um workshop é educacional, o pré-requisito básico, e ponto de consenso, era o de que este projecto servia como meio para explorar a praxis artística de forma aberta e interactiva.
O workshop realizou-se em Salónica, ao longo de todo o mês de Maio de 1997. O Instituto Goethe e o Consulado alemão autorizaram o uso das antigas instalações da Escola Alemã. Foi lá que os estudantes de ambas as escolas se conheceram pela primeira vez e o trabalho começou imediatamente. Tanto o novo lugar como as exigências do espaço partilhado exerceram pressão sobre qualquer sentido estabelecido do self. Os papéis familiares que se esperava serem desempenhados foram revertidos nas suas mentes. Os participantes encontraram-se, de repente, fora da sua zona de segurança. A certeza dos seus pontos de vista e ideias foi desafiada, quando eles perceberam que os seus pressupostos não se sustentavam e não encaixavam. O familiar e o não familiar, a proximidade e a distância continuaram a alternar-se e a sofrer inversões. Sentimentos de exaltação e serenidade foram partilhados por todos.
O que se seguiu obrigou a que todos os planos de trabalho previamente decididos fossem alterados e repensados. Desde o primeiro encontro, tornou-se evidente que o workshop se confrontava com um problema prático, e artístico, por extensão, com o espaço expositivo. Inicialmente, a organização de Salónica Capital da Cultura '97 tinha-nos atribuído o Antigo Museu Arqueológico (anteriormente, Yeni Tzami, a mesquita dos judeus islamizados de Salónica), um pequeno edifício classificado e carregado de símbolos. As idiossincrasias do design do edifício e as limitações espaciais que impunha aos participantes tiveram um papel crucial na decisão das formas de partilha do espaço, e da coexistência de 32 obras diferentes. Consciente de que os desafios colocados pelas exigências do espaço partilhado requeriam a contribuição colectiva de todos os participantes, decidi colocar a questão a todo o grupo para deliberação, em vez de simplesmente encontrar um espaço alternativo. Na nossa primeira reunião, apelei a formas imaginativas de enfrentar estes desafios. No dia seguinte, um dos estudantes da Kunstakademie propôs que fosse produzido e exibido um trabalho colectivo. Esta abordagem teria resolvido parcialmente os nossos complicados problemas de espaço e, ao mesmo tempo, servia bem aquele que era objectivamente o propósito do workshop, o da colaboração; no entanto, poderia também ter funcionado como uma cortina de fumo, a encobrir nebulosas inseguranças ou a silenciar conflitos artísticos produtivos, neutralizando, em última análise, explosões de genialidade. O conceito de trabalho colectivo era, há que admiti-lo, formalmente desafiante e radical, e politicamente controverso (dado o simbolismo do edifício em questão). Desencadeou um interessante e animado debate, que levou a intensas e significativas disputas, não só entre as diferentes escolas, mas também entre membros de uma mesma escola. Não só os estudantes da Kunstakademie ponderaram, pela primeira vez, produzir colectivamente um trabalho, mas vários deles também subscreveram a proposta. Em marcado contraste, os seus homólogos gregos recusaram unânime e categoricamente colaborar; alguns, por não conseguirem entender e outros porque discordarem do que era proposto.
Nesse crucial ponto de viragem, entrou em cena Jannis Kounellis. A sua presença sempre inspiradora não poderia ter sido mais oportuna e o seu contributo funcionou como um catalisador para avançar. Por outro lado, a sua chegada, na segunda metade do workshop, criou uma atmosfera estranha. Os alunos de Kounellis, que se sentiam familiarizados com o seu professor e que, por isso, podem ter sido levados a pensar que teriam um acesso mais directo a ele, perceberam que a língua que os estudantes gregos partilhavam com Kounellis criava um imediatismo que aqueles não possuíam. Jannis Kounellis ensinava-os por intermédio de um intérprete, que traduzia do italiano (Kounellis tinha-se naturalizado italiano) para inglês e alemão.
No final, a necessidade prática de encontrar um espaço de exposição adicional tornou-se premente. A organização de Salónica Capital da Cultura '97 deu-nos um armazém abandonado na Alfândega da Autoridade Portuária da cidade, o qual podia facilmente albergar as 32 obras. Decidi, ainda assim, manter também o espaço inicial no Yeni Tzami; desde logo, porque muitos debates frutíferos tiveram lugar em torno dos seus desafios específicos, e, em segundo lugar, porque alguns dos participantes já estavam numa fase avançada de concepção e planeamento do seu trabalho, com esse espaço em mente. Assim, os 32 participantes foram divididos entre os dois lugares, e após um pacífico acordo entre eles, os espaços de exibição foram alocados e o trabalho concluído. Ambas as exposições foram inauguradas no mesmo dia. Os artistas doaram as obras à cidade de Salónica e, após o final da exposição, elas ficaram guardadas nos armazéns da organização Salónica Capital da Cultura '97. Mais tarde, passaram a integrar a colecção permanente do Museu de Arte Contemporânea de Salónica.
A deliberada ausência de termos estritamente definidos a priori, a par de uma forte obrigação de colaborar, levou os participantes a sair do campo da mera troca de ideias para um diálogo mais essencial e fundamental, através dos caminhos exploratórios que constituem a obra de arte enquanto tal, e através da deslocação dos artistas para um novo contexto cultural, novo para todos os participantes por igual. Toda a proximidade e distância entre as duas escolas, a variedade de media artísticos utilizados, as diferentes expressões artísticas, bem como a diversidade e variedade de ideias e problemas serviram para iluminar a questão da exposição da obra na sua busca de um lugar. Muito mais do que o ordenamento de obras no espaço, a exposição transformou-se na constituição de uma unidade onde, por um lado, a autonomia da obra de arte foi preservada e, por outro lado, a qualidade única da relação da obra com o seu novo lugar foi assegurada.
Por vezes, surge a necessidade de criar, desenvolver e apoiar um espaço intersticial, um espaço-intermédio. Um espaço onde os antagonismos económicos e políticos e os interesses arreigados e organizados podem ser suspensos; um espaço que assume a forma de um ‘outro-onde’, de um ‘outro-lugar’, onde as produções artísticas podem escapar da sua subsunção imediata aos ditames e tendências calculistas da indústria cultural; um lugar onde as produções artísticas não acabam por ser reduzidas a passageiras exibições de ar dramático. É este ‘outro’, este lugar suspenso num espaço de antagonismos, que os artistas procuram criar, inventar, de molde a serem capazes de corresponder às exigências e requisitos da obra de arte. Não apenas as exigências da apresentação e da circulação do trabalho no mundo em geral, mas também, e crucialmente, as exigências de que as condições de criação de obras de arte sejam deslocadas e reformuladas de forma a melhor servir a constituição da obra de arte pelos seus próprios elementos. Todo o processo é sentido como uma viagem através de uma indistinta e obscura passagem, onde a única coisa certa é o destino ser desconhecido. Para mais, o desejo de alcançá-lo pode não vir a ser satisfeito. No entanto, nós, artistas, começamos com este desejo e visamos alcançar esse inventado ‘outro-onde’, esse lugar onde o trabalho artístico assume uma outra posição que não aquela que já lhe foi determinada. Os tempos em que esta necessidade é sentida constituem um lugar necessário e suficiente, dentro do qual o nosso trabalho pode nascer. É lá, naquele inventado ‘outro-lugar’, que também desejamos que o nosso trabalho se encontre com o Outro, o Outro imaginado e inventado que emerge nesta suspensão de um emaranhado de equívocos em massa. Este Outro assume a qualidade de um espectador ideal e intérprete ideal da obra de arte. O encontro entre o trabalho e sua recepção interpretativa no terreno suspenso do inventado ‘Outro-onde’ e do inventado Outro tem apenas um propósito, enfrentar o Aqui e Agora, e enfrentar a experiência.
Iniciativas como o workshop de Salónica servem como sinais de uma praxis que pode ocorrer a par das estratégias estabelecidas das instituições; as iniciativas podem ser apoiados por estas, mas mantêm a sua independência. Podem trabalhar em harmonia e acordo com as instituições, ou encontrar-se em oposição e em luta com elas. Neste contexto, os participantes são chamados a pensar em questões relativas não só a questões práticas do processo artístico, mas também às possibilidades das práticas artísticas enquanto tais. Como podemos permanecer investidos na revitalização do olhar e na criação de espaços de experiência partilhada? Como podemos imaginar e configurar uma outra experiência, para lá das estruturas do aqui e agora, de modo a criar, no aqui e agora desta experiência?
Uma obra de arte não é nem um destino selado, nem algo autoevidente e predeterminado (pelas leis ou tendências do gosto, normas prevalecentes da prática artística, directivas institucionais, estratégias ou políticas), não se anuncia antecipadamente nem é o resultado de um método aplicado. Nada garante a sua produção e transmissão eternas. Acabará como uma mera exposição num futuro museu antropológico, uma amostra de uma civilização que levantou questões de verdade e liberdade, por meio de uma prática peculiar e das suas mutáveis e versáteis criações a que costumava chamar arte?
–
Traduzido do inglês por Susana Mouzinho
Editado por Luís Tibério
Participantes:
Thomas Breuer, Claus Brunsmann, Seung-Un Chung, Brigitte Dams, Michael Denzel, Felix Ersig, Harald Hofmann, Tatiana Ilic, Markus Karstiess, Patrizia Kristaldi, Christiane Löhr, Maria Rigoutsou, Ulrike Rutschmann, Bernd Ruzicska, Felix Schramm, Bärbel Schülte- Kellinghaus, Sandra Vöts, Annett Weissenburger (Kunstakademie Düsseldorf)
Haris Anastasiadis, Nikos Arvanitis, Thanasis Argianas, Eleni Valavani, Vasilis Kalantzis, Panagiota Kapela, Nektaria Kotamanidou, Christina Mitrentze, Dimitris Neokleous, Stella Papadopoulou, Christos Ponis, Efi Souravla, Georgia Touliatou, Konstantinos Tsopelas (Escola de Belas Artes de Salónica)
Supervisor: Jannis Kounellis
Conceito, organização e trabalho de curadoria: Evanthia Tsantila
Adaptação arquitetónica e supervisão da produção de obras de arte: Alexios Dallas
Fotógrafo de exposição: Athanassios Karanikolas
Em Janeiro de 2000, foi publicado um catálogo com o apoio da Fundação J. F. Costopoulos.