1.
O teatro está fechado. A espera acabou. O espectador ao aperceber-se da lenta degradação do dia, deixa o seu corpo enraizar-se no mármore. Uma vez mais, de uma vez a matéria da sede sobe à garganta. O espectáculo, que durou noites, meses, chega ao ponto de não ser iniciado. De um quarto para o jardim, do jardim para o quarto, do quarto para o abismo. Tudo tem o seu fim, ainda que não articulado. O dom da produção torna-se por vezes numa espécie de cancro. Um intervalo a mais entre aquilo que nos preserva e aquilo que nos mata.
A hesitação
em rumor
subitamente habita o espectador.
Decide então ficar,
manter tudo em chamas,
até não haver o fazer.
2.
A noite tem destas coisas. Não se compreende bem, como, quando e porque decidem eleger o teu corpo, outrora ao abandono, sem a especulação inicial de ser uma casa translúcida, fina.
Mas a erosão das paredes é irreversível e revela a secreção que cospe o pus interior sobre a neblina dos dias.
E no silêncio inamovível anterior ao espectáculo, o sangue acumula-se em redor do fémur, propagando-se depois lentamente a outras partes, com o tempo que o cimento leva a ser lava,
até todo o edifício inflamar.
Ergue-se então o espectador em pânico.
3.
Nesse momento, esperava-se que algo acontecesse,
que batesse por certo na expectativa do espectador essa ausência,
que acontecesse no espectador a expectativa desse lugar fechado
e que ele voltasse então em torno de si próprio,
como se o nada ter testemunhado
abrisse uma ferida de entendimento no centro da sua própria certeza.
A matéria da iniciação daquilo que se prevê antes do incêndio
são as próprias cinzas do corpo.
4.
Debaixo do palco, na parte detrás do ecrã, tudo isto é minuciosamente encenado e repetido, noite após nada, nada após noite.
E chegamos a estar anos nisto.
Projectamos a vida inteira dentro da sala e permanecemos fora, à espera, no foyer de entrada.
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Imagem: Ex Cinema Mele Aperto. © Alice Geirinhas