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O ECMA (Ex Cinema Mele Aperto), em Pizzo, na Calábria, que em Outubro serviu como espaço de investigação, residência e acção sobre o tema do intangível, para um grupo internacional de artistas com urgências e modus operandi diversos, continha em si fisicamente já uma proposta de possível entendimento sobre o tema. Um cinema dividido entre a obscuridade de uma caverna e o horizonte aberto de um mar. Erguido num precipício onde os planos se trocam durante as noites – a sala e a tela invadida pela luz do projector, o Mediterrâneo com temperamento a abarcar o negro. Assim que para os artistas participantes, para além de todo o estímulo arquitectónico, textural, objectificado de um edifício meio em ruína, meio em exaltação por um novo uso, foi fulgurante a atracção entre estes dois planos, de onde surgiram trabalhos cuja essência poética comunica entre si, alguns deles que pudemos experienciar na exposição We only want the intangible, patente até 5 de Dezembro de 2015 na Zaratan – Arte Contemporânea. Tratemos neste artigo do plano da obscuridade.
A caverna
Entra em cena Bataille, que se senta numa pedra nas grutas de Lascaux em 1955 em França, para se debruçar sobre as razões e a forma como o homem pré-histórico inicia a sua actividade artística. Identifica os dois motores da criação, os interditos morte e desejo, que serviram como forças interiores para os primeiros actos além funcionalidade de sobrevivência, ulterior ao ritual, sacrifício e nascimento de cosmologias e superstições baseadas na tríade medo-culpa-castigo, anteriores à percepção de uma posição num tempo específico e realidade histórica. A angústia perante a morte foi o drive para que o movimento de transgressão acontecesse no homem e se expressasse em arte.
«Por definição, o limite extremo do ‘possível’ é o ponto em que, apesar da não inteligibilidade da posição que tem para ele ser, um homem, tendo-se despojado da tentação e do medo, avança tão longe até que não se pode conceber a possibilidade de ir mais além. Não é preciso referir até que ponto é vão imaginar um puro jogo de inteligência sem angústia (embora a filosofia se encerre nesse impasse). A angústia é tanto quanto a inteligência, um meio para o conhecimento, e o limite extremo do ‘possível’, noutros aspectos, não é menos vida que o conhecimento.» – G. Bataille, A Experiência Interior, pp. 39-40
A «alegoria da caverna», utilizada para sustentar as oposições entre luz/verdade/conhecimento e escuridão/ignorância/ilusão, e sobretudo um primeiro discurso sobre a projecção da realidade, caras à filosofia ocidental, abordada no diálogo entre Sócrates e Glauco, no livro VII de A República de Platão, aqui perde o efeito, pois para o artista a luz está no entendimento do limite do possível, e a angústia expressa-se muitas vezes nos becos, nos buracos, nas fendas, onde a confrontação consigo mesmo não dá lugar a projecções, simulações ou simulacros, estes que necessitam de ser vistos à luz do dia ou do ecrã, para se tornarem máquinas desejantes. A luz e o seu excesso trazem o ruído das imagens, criam a distracção, dispersão e construção de verdades temporárias úteis aos que fazem lucro do consumo obsessivo, dentro e fora das cadeias de alimentação artísticas.
«O espectáculo que é a extinção dos limites do moi e do mundo pelo esmagamento do moi que a presença-ausência do mundo assedia, é igualmente a supressão dos limites do verdadeiro e do falso pelo recalcamento de toda a verdade vivida sob a presença real da falsidade que a organização da aparência assegura.» – Guy Debord, A Sociedade do Espectáculo, p. 173
A dificuldade de se documentar o escuro, de se perceber os limites espaciais e corpóreos, de o tornar um produto consumível em larga escala tornam a caverna o lugar ideal para uma metafísica cruel e de confronto, pois nela estão já impressos os interditos morte e desejo. Em Lascaux, o fulgor de Bataille foi pela visão das pinturas, que testemunhavam uma actividade que pela primeira vez colocava no tempo do homem o tempo de imaginar, de não fazer o utilitário, de recreio, de dúvida e exaltação expressas, o mesmo que espantou Herzog nas grutas de Chauvet (documentado em Cave of Forgotten Dreams, 2010). Já o silêncio como o escuro, não se deixa consumir, e ainda hoje é difícil perceber de que forma sonora os homens expressavam a sua inquietação dentro das cavernas.
Talvez por isso Antonin Artaud ansiasse por um corpo sem orgãos, sem limitações, um corpo caverna onde os sons pudessem circular com a reverberação e ecos primordiais. Artaud, que na última fase da sua produção poética escrita usou o som como um veículo, propôs-nos antes um teatro da crueldade ele também feito de sons que ultrapassassem as vibrações, trepidações que a ditadura da linguagem e lógica ocidentais tinham acimentado.
«(...) o teatro deve empenhar-se, por todos os meios, em pôr em causa não só os aspectos do mundo objectivo e descritivo externo, mas do mundo interno, quer dizer, do homem considerado metafisicamente.» – Antonin Artaud, O teatro e o seu duplo, p. 90
E a crueldade proposta por Artaud, era mesmo essa de pôr em causa a aparência vista à luz da cultura comodificada, das imagens projectadas, da psicologia da arte que explora a emoção e imediatismo por meios previsíveis, como avizinhar-se do horror, da dramatização do presente e da idolatração das obras do passado.
No manifesto «Basta de Obras Primas», ele antevê as críticas ao seu teatro:
« – Com a mania que todos temos de tudo amesquinhar, mal eu proferir a palavra ‘crueldade’, logo todos suporão, que com essa palavra significo ‘sangue’. Todavia ‘teatro da crueldade’ significa um teatro difícil e cruel para mim próprio, antes de mais nada. E no plano da representação, não se trata da crueldade que podemos praticar uns conta os outros (...) – mas sim duma crueldade muito mais terrível e necessária que as coisas têm a possibilidade de exercer sobre nós. Não somos livres. E o céu pode ainda tombar sobre as nossas cabeças.» – Ibid., p. 78
E tomba repetidas vezes. Mas o Intangível é essa mesma crueldade em marcha. O exercício terrível, o único necessário de procurar aquilo que não se objectifica – por ser impossível a compreensão total do que é a urgência presente no indivíduo que produz, caminha e rumoreja no escuro. E não querer o possuir, o simular ou o habitar (ao que parece, na caverna onde danças circulares aconteceram não se encontraram restos humanos, ninguém a possuía, ninguém a habitava). O Intangível que foi várias vezes confundido com a perspectiva de um horizonte, ou com uma linha onde se projectam coisas que se perdem ou não se alcançam, quando os barcos ligeiramente à tona de água (barcos mais frágeis do que as expectativas da civilização inteira encadeada por uma luz nunca solar ou por um devir hiante) anunciam que o mar ainda pode tombar sobre as nossas cabeças.
Post Scriptum para os que não dormem
A esta altura, senta-se Bataille numa das cadeiras do Ex Cinema Mele Aperto. Coça o scrotum e dobra a perna. Está ligeiramente incomodado com o senhor Artaud que entrou não se sabe oh deus por onde, e que martela agora um cepo, exclamando sílaba a sílaba um poema na língua do primo Dante.
O palco está escuro, como sempre. A tela foi retirada para evitar ser rasgada uma vez mais, os acidentes têm acontecido mas ninguém os leva a sério. Há todo um aparato para construir as coisas mais simples pelos meios mais difíceis que são, neste momento, as de única importância. Por exemplo, o mestre Giuseppe decide sair às 5 da manhã para testar quanta gasolina bebe o motor da lancha. Consegue depois voltar a remo com três peixes graúdos que dão para o jantar de todos, e sobra ainda um para o Artaud atirar à audiência ao entoar lentamente P-E-S-C-E! Rowena e João estão, desde há dias, a tentar projectar raios solares no interior da caverna-cinema, com longos canais de água amovíveis, forrados a prata. O esforço resultou no fabrico de um terceiro espaço efémero, onde agora um espectáculo de sombras acontece e, embora a inundação tivesse sido previsível, o que lhes interessava era perceber se aquela luz era mesmo verdadeira. O Bruno esse encontra-se debaixo do palco, há um par de horas, a dizer que o espectáculo acabou. Recebe um telefonema tardio de um tal de Jeremy, que liga desde de uma fábrica de vidro na Marinha Grande. Ao que parece está a tentar reproduzir o positivo da caverna em vidro negro, na expectativa de montar um anti-cinema dentro do próprio cinema. Bataille olha em volta e exclama que é tudo muito bonito, mas é preciso mais sacrifício, mais. Entretanto entra o Fabre, inesperadamente do topo de uma das galerias, rouco a gritar «I am mistake, I am mistake, I am a mistake», seguido de «WE’LL PUT YOU IN THE MAGAZINE, WE’LL PUT YOU IN A MOVIE, AND DON’T WORRY ABOUT YOUR EYES, WE RETOUCH ANYONE OVER TWENTY».
Aí o Artaud perde a paciência e desce do palco. Não está para aquilo. Diz ao Bataille, que estes ajuntamentos de artistas dão sempre em forrobodós existenciais, e que ia para o México, que era mesmo ali ao lado, ao virar da sua cabeça e que seria melhor deixar o intangível como responsabilidade para todos os presentes. (Espanto, Pausa, Aceitação)
Depois de uma breve paragem no escuro, eles retomaram o seu fazer, no riso interminável dos que não sabem e ainda assim continuam.
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Bibliografia seleccionada
ARTAUD, Antonin. O teatro e o seu duplo. Lisboa: Fenda, 1989.
BATAILLE, Georges. Inner Experience. Albany: State University of New York Press, 1988.
BATAILLE, Georges. O Nascimento da Arte. Lisboa: Sistema Solar, 2015.
BATAILLE, Georges. Oeuvres Complètes, Vol I-XII. Paris : Gallimard, 1971-88.
DEBORD, Guy. A Sociedade do Espectáculo. Lisboa: Edições mobilis in mobile, 1991.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo, Capitalismo e Esquizofrenia. Lisboa: Assírio e Alvim, 1996.
FABRE, Jan. I AM A MISTAKE, seven works for the theatre Martin E. Segal. New York: Theatre Centre Publications, 2009.