«No cinema há duas coisas: há a fita na cabine e há o ecrã onde passa a fita. A fita da cabine está na eternidade que é para agora, para logo e para ontem, que é para todo o tempo. E até podemos imaginar um processo científico tão perfeito que todo o filme esteja, não numa fita, mas num ponto. Então, um ponto no eterno. É a fonte do filme. Depois, há fenómenos que levam esse negócio ao ecrã, e a gente está duas horas a olhar para aquela coisa. Pode ser que no mundo tudo se passe estando tudo no absoluto.» Agostinho da Silva, Ir à Índia sem abandonar Portugal. Lisboa: Assírio e Alvim, 1994, p. 37.
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Estamos no ECMA (Ex Cinema Mele Aperto) em Pizzo, na região Calábria, no Sul de Itália, nos preparativos para a residência We only want the intangible. Durante esta semana, um conjunto interdisciplinar de artistas produzirá novo trabalho inspirado pelo sentido de «urgência» presente no lugar e nas práticas de cada um. Uma colaboração para o entendimento daquilo que se apresenta intangível, no horizonte da compreensão de cada participante (o tema da intangibilidade será explorado em várias frentes nos próximos artigos). Desta feita, interessa-nos olhar o espaço que serve de ilha para esta investigação.
O jardim das maravilhas
Francesco Mele começou o seu projecto noutra localização em Pizzo, no final da década de 40, com um espaço popular chamado Giardino della Meraviglie. Aqui projectavam-se filmes ao ar livre e uma pista de dança era de vez em vez aberta a bailes improvisados ao som de discos reproduzidos em grafonolas. Neste jardim, com o Mediterrâneo mesmo ali à vista, toda uma comunidade se reunia para conversas, namoros iniciavam-se e os eventos estavam sempre à pinha. No entanto, anos passados, Mele foi «convidado» a fechar o espaço, quando a autarquia local projectou uma estrada que atravessaria esse mesmo lugar.
Ele decidiu então escolher outra localização para instalar o giardino cultural – desta vez seria necessária uma posição estratégica na cidade, onde nenhuma estrada pudesse ser construída e sobrevivesse às alterações políticas e urbanas que Pizzo do pós-guerra tinha em marcha. Escolheu uma área antigamente habitada por pescadores. Com essa escolha captou o genius loci do lugar: em frente ao mar, no cimo de uma falésia, com um castelo no lado esquerdo, uma igreja no lado direito e com as costas protegidas pelo centro histórico da cidade. Aqui nasceu a segunda versão do Giardino della Meraviglie, no início dos anos 50, onde uma «pista a ballo» (para dança) foi instalada e cujas marcas ainda hoje estão presentes.
Mele decide depois construir um cinema nesse lugar, com obras realizadas entre 1956 e 1960. O Cinema Teatro Mardiana (nome dado em honra da então Presidente da Câmara Diana Musolino) é inaugurado em Setembro de 1960, e mais tarde vem a chamar-se Cinema Mele.
Cinema Mele
Este edifício, imaginado pelo engenheiro Francesco Mele, foi construído onde no passado se erguiam os muros que faziam parte da fortificação de Pizzo. Parte dessa estrutura ainda está presente por detrás do ecrã, em volta e debaixo do cinema. Mele elaborou um projecto moderno para o seu tempo, de linhas simples, tendo em conta as relações de luz, sombra e obscuridade – o cinema foi construído em parte como uma caverna (literalmente escavou a rocha, levando o ecrã para dentro da terra) e em parte como um forte.
A relação entre o interior e o exterior da sala estabelecera-se por um longa janela, atrás da última bancada, que se abria nos meses de calor, para se assistir aos filmes, a partir do terraço panorâmico. Imagem em movimento na «caverna» em frente, o Mediterrâneo em burburinho nas costas.
Até aos inícios dos anos 80, o cinema foi explorado pela família Mele com sucesso, tendo sido depois arrendado a dois indivíduos. O último foi um tal de «Pino Imineo», que programou desde filmes populares a espectáculos de magia e, nos derradeiros anos, filmes eróticos e pornográficos.
O cinema fechou em 1993 devido ao pouco lucro e às novas regulamentações de Segurança e Higiene para espaços do género. Estes factores adicionados ao auge do entretenimento televisivo marcaram a decadência e o fecho deste e de outros cineteatros por toda a Itália.
ECMA – Ex Cinema Mele Aperto
20 anos fechado, o Cinema sofreu a erosão das noites. A história comum de património dividido entre membros da família com diferentes visões ou interesses no uso ou abandono do espaço. Em 2013, Giuseppe Mele, artista e neto do fundador do cinema, começou a trabalhar no edifício e, aos poucos e com investimento próprio, a criar condições para receber projectos artísticos – residências, workshops, gravações de bandas – numa lógica pouco institucional, onde a primazia foi dada à qualidade dos encontros.
«É estranho. Eu estou no cinema e não projecto um único filme. E isso cria uma espécie de ansiedade. De certa forma, imagino que o cinema é em si o filme e eu estou dentro dele.» Diz-nos Giuseppe, que é o escultor da gigante instalação e teatro invisível que se tornou o cinema desde a sua chegada. Aqui toda a intervenção é pessoal, desde as esculturas que vão habitando o espaço, ao design e construção das novas janelas, às bancadas de madeira da cozinha aberta instalada no foyer, onde no passado o público esperava.
Debaixo dos arcos romanos, na parte detrás do ecrã, estão cerca de 50 queijos a curar. Quando a luz laranja se abre para os iluminar, assiste-se a um filme com uma única imagem estagnada a olho nu, mas em sim mesma em movimento. Giuseppe tem investido as suas economias no cinema «vazio» com um negócio de venda de produtos regionais da Calábria (de Calabria) no Borough Market em Londres. Assim que, muito objectivamente, é o azeite e o queijo que possibilitam habitar o cinema com ideias. E no caso da cidade de Pizzo, neste momento, não há um único aparelho cultural que contribua para a formação ou discurso alternativo através das artes. Ao mesmo tempo, numa cidade que vive um auge de 20 dias por ano dedicadas ao turismo balnear, Giuseppe tem a tarefa de actuar sozinho num contexto em que os preconceitos em relação a qualquer tipo de visão libertária do indivíduo estão presentes. O presente uso do espaço por grupos de artistas internacionais, aberto ao entrosamento de elementos da população local, marcam uma nova era do cinema como espaço interdisciplinar de encontro/confronto de ideias e modos de aceder ao mundo. As últimas películas continuam aglomeradas na sala de projecção, a máquina calcinou, o cinema vazio recuperou a sua aura através de um uso do espaço que não depende tanto da luz.
O destino do edifício dependerá muito da sensibilidade dos herdeiros, da autarquia e de possíveis fundos para a sua restruturação. Até agora o esforço têm sido focado na essência do lugar. Um trabalho de fora para dentro. A recuperação total do edifício em si é demasiado dispendiosa no presente. Nos próximos meses, o importante será isolar provisoriamente o telhado por cima do auditório, para que suporte os próximos invernos, e continuar a usar o cinema como um lugar de encontro.
We only want the intangible parte da intangibilidade impressa neste cinema, da determinação de Giuseppe em manter a aura do lugar e do movimento daqueles que permanecem num ponto onde o corpo presente é o filme.