Lettre 1: Entre terre et mer As migrações e a «velha Europa»
Promover a mobilidade e as migrações é o nosso passaporte para o futuro.
A Europa é um continente de migrações, de migrantes, de emigrantes e de imigrantes. Num momento em que se discutem restrições à mobilidade conquistada importa assegurar que não esquecemos quem somos. Não é de hoje que os europeus migram no interior da Europa, que recebem migrantes de outros continentes ou que se movimentam no mundo.
Na verdade, sem migrações a Europa não era o que é hoje, o que foi no passado, nem o que será no futuro. Se, por exemplo, falarmos de arte, essa herança que recebemos e retransmitimos à próxima geração, devemos sublinhar que as migrações (também) criaram a arte europeia. Dos construtores de catedrais aos artistas do Renascimento, muitos foram os que circularam, criaram algumas das suas melhores obras em países que não os seus, deixaram um legado que nos aproxima. No século XX, a «Escola de Paris» foi um evento multicultural onde a Europa se reencontrou com a criatividade. Fizeram parte desse grupo o italiano Amadeo Modigliani (1884-1920), o búlgaro Jules Pascin (Julius Mordecai Pincas) (1885-1930), o russo Marc Chagall (1887-1985), o polaco-francês Moise Kisling (1891-1953) ou o russo Chaim Soutine (1884-1943). Em simultâneo, estavam em Paris criadores como Picasso, Amadeo de Souza Cardoso, Paul Klee, Marc Jacob e tantos outros europeus.
Hoje, na ânsia de controlar o amanhã, queremos esquecer o passado e, com isso, impedimos o futuro. A Europa não precisa de restrições à mobilidade. Pelo contrário. Precisa que encontremos uma estratégia para impedir a imobilidade e promover a circulação de pessoas e das suas capacidades. Não é a livre circulação no interior do espaço Schengen que precisa de ser restringida mas a relação do espaço Schengen com o resto do mundo que precisa de ser alterada permitindo que a mobilidade se realize.
Muitos dos problemas que o controlo de fronteiras implica (migrações irregulares, intrusão de imigrantes clandestinos, tráfico de seres humanos) só se resolvem com políticas de abertura de fronteiras. Controlada, progressiva, pensada de acordo com as oportunidades e necessidades da Europa, mas uma abertura de fronteiras e não um fechamento dos mecanismos de controlo. Há anos que a financiarização das políticas europeias nos impede de pensar nas questões essenciais como são as que nos ligam ao futuro.
A Europa precisa de uma política europeia para as migrações porque as migrações são uma questão europeia. Promover a mobilidade no interior da União Europeia é uma necessidade e um investimento na nossa coesão social e económica. Pensar hoje as futuras migrações globais da (e para a) Europa é uma urgência, uma estratégia acertada e uma necessidade e, no entanto, ainda não está a ser feito. Com o passar dos dias nasce uma Europa de velhos. Velhos de idade e, sobretudo, velhos de ideias e de coragem. Promover a mobilidade e as migrações é o nosso passaporte para o futuro. Enquanto europeu, gostava que Portugal liderasse esta política.
(Pedro Góis)
Lettre 2: Cette abîme que l'on appel Méditerranée
«A ideia de uns Estados Unidos da Europa é antiga de séculos.»
Sobressalto cívico-cultural para a Europa.
A ideia de uns Estados Unidos da Europa é antiga de séculos. De entre outros, Victor Hugo, Robert Schuman ou Jean Monnet defenderam este projecto de união de várias Nações com desideratos que, sendo distintos, passavam, no essencial, por manter a paz no continente e por reforçar os laços de solidariedade económica, política, social e cultural que tornasse a Europa mais forte em face dos blocos que se foram desenhando a Ocidente e a Oriente.
A visão lírica de Victor Hugo, que em si nada tinha de errada, padecia dos normais problemas de uma concepção mais voltada para a utopia que para a concretização prática. Do escritor e humanista temos todos gratas memórias, em especial os Portugueses que, ao abolirem a pena de morte em Oitocentos, receberam os maiores encómios deste vulto notável. Visões mais realistas como aquelas que deram origem à assinatura do Tratado de Paris e do de Roma, através dos quais se constituíram as então Comunidades Europeias (CECA, CEE e EURATOM), só vingaram devido às particulares condições históricas em que ocorreram. Certo é que, tirando os conflitos nos Balcãs, a Europa vive em clima de paz há cerca de 70 anos, o que nunca aconteceu na sua História.
A questão que todos nos colocamos é a de saber até quando este estado de coisas se manterá. O diagnóstico está há muito feito: o termo da «Guerra Fria», a afirmação dos EUA como única superpotência global, a crise económica global, o desastre na intervenção síria e o afluxo massivo de refugiados à Europa, o populismo reinante, a crise das ideologias, a falta de verdadeiros homens e mulheres de Estado, são alguns dos elementos que precipitaram os egoísmos nacionais e a vontade de encerrar fronteiras. É evidente que uma política de directório não ajuda e faz os Estados menos poderosos economicamente descrerem no chamado «projecto europeu».
Uma Europa que, esfrangalhada pelos nacionalismos crescentes, da Hungria à França ou já mesmo à Alemanha, ajudada pelo terrorismo e demais questões de segurança, arrisca-se a continuar a erguer muros que, mais do que Berlim, alastram como mancha de azeite.
Sem pretender ser minimamente catastrofista, a União está cada vez mais desunida e arrisca-se a implodir se e na medida em que a axiologia partilhada pelos Estados-Membros não for reforçada. É também evidente que não podemos embarcar em concepções maximalistas e que só adiantam o caminho para o abismo, como seja a de que a UE deve ter uma política de imigração de totais portas abertas. O que não significa que nos fechemos sobre nós, mas que temos de trabalhar com os regimes do Médio Oriente e com os EUA, em grande parte causadores da desgraça humanitária na Síria e nos países vizinhos. A Europa não pode ser responsabilizada pelos erros dos outros, mas também não deve isentar-se das suas próprias culpas. Muitas delas devidas a um alinhamento acrítico com o bloco americano, em virtude das dependências económicas do mesmo e que tanto têm provado bem desde a crise do subprime…
Quero acreditar que outro futuro para a União ainda é possível. Tal só se faz por via da cultura, onde a arte desempenha um papel cimeiro. Só um sobressalto cívico pode acordar consciências e suscitar o debate. A Europa precisa de debater como de pão para a boca, ou de euros para a economia, se quisermos usar uma imagem mais na moda. Mantermo-nos amorfos enquanto os políticos se reúnem em encontros inconsequentes é o princípio – ou já o meio – do fim. É a hora dos cidadãos que se identificam com o diálogo na diversidade de culturas. Diz-se que as sociedades são cada vez mais multiculturais e multiétnicas, porém, na verdade, pouco sabemos uns dos outros e uma corrente de união entre os artistas europeus seria fulcral para conseguirmos não deixar o futuro europeu apenas nas mãos dos políticos. Trata-se de um assunto demasiado importante para tal.