O olho tem vontade de explorar. São migalhas de universo à deriva no vazio? Que alarve dentada de qual dos Titãs as soltou e de que maná divino provinham? Que bolo de mel trincou o gigantesco ser, quem lho preparara e com que sentimento? Estaria embruxado, como tanto alimento mitológico, para prender Hipérion ou um dos seus irmãos a Teia ou qualquer das suas irmãs e gerar Sol, Terra e Lua onde espalhar a sua semente, contanto que haja quem a recolha? Façamos em vão por crer que os estilhaços que ante nós se propagam não resultem da refeição de Cronos, caso em que teriam de ser ossinhos não solidificados, o tempo a devorar os seus filhos, todos nós.
Gotas coloridas em perpétuo movimento num espaço sideral e siderante? Lágrimas de Reia, filha do Céu, de tristeza pela prole perdida, de impotência ou vingança jurada, choradas sobre o leite derramado de Amalteia? Ou terá Zeus bebé bolçado o sustento que a cabra lhe oferecia para sobrevivência e retribuição do acto infanticida? Que ciência tem o filho oculto da fertilidade do destino que o aguarda enquanto mama na teta do animal, na caverna do Monte Ida, vendo dançar os coribantes cuja dança e canto esconde o filho ao progenitor assassino? Cedo fará regurgitar mundos e fundos ao pai tirano, a quem pingos alcalinos de mezinha terrena polvilharão a negra bílis.
Esferas brilhantes captadas num instante sobre fundo preto? Deméter, Héstia, Hera, Hades e Poseidon largados das entranhas pátrias à velocidade da luz, deixando amargo de boca e nódoas na gravata do progenitor? Pedras lançadas pelos três hecatônquiros Briareu, Coto e Giges, livres enfim do abismo do Tártaro, sem sujeição das suas almas a julgamento, cada um com cinquenta cabeças e cem mãos? Ciscos nos olhos dos ciclopes Arges, Brontes e Estéropes, atarefados a forjar trovões, elmos e tridentes para os deuses que os devolveram à superfície, para a batalha inevitável, o combate que se anuncia, o recontro que não mais deixaremos de repetir a todas as escalas.
Electrões em roda-livre cujas posições exactas jamais poderemos asseverar, a um tempo vivos e mortos como o gato de Schrödinger? Quarks em meia-dúzia de sabores insuspeitados, a matéria pulverizada, o Julgamento Final? Quem sabe quem vive e quem morre no teatro de guerra, quem mata e viola e chacina, quem espezinha convenções e quem é herói da paz, quem faz milagres humanos e quem a tudo resiste, o alguém que sempre diz não? É na filigrana da História que partículas tão finas como as do oiro que se espalha à vista decifram pormenores. É nas contas do colar da Rainha da Noite, a ribombar no chão, que tambores tribais encontram nova cadência.
Bolhas ascendentes num copo gelado à beira-mar? Espuma oceânica que deixa buracos na areia? Globos dispersos pelo nada ou mundos distantes mas concretos, adivinhados por aparelhos de agudíssima precisão? Planetas hipotéticos com base em medição indirecta de ondas de calor ou no esmaecer que causam, à passagem, pelo astro mastodôntico em cuja órbita se atravessam? Quantos deles têm condições ideais para a vida tal como a conhecemos? Quantos deles abelhas para que mel possamos ter, quantos deles insectos em nuvens infectas, morte de primogénitos, pragas incessantes? Desejo eterno de regresso ao útero materno, ao Paraíso perdido.
Orvalho da manhã extraviado na noite dos tempos? Eros incontido, anjo das flechas ou sátiro guloso e bruto que há-de saciar mais do que uma boca? De que espasmo da paixão jorra o caudal? Que fluido corpóreo – sangue, esperma? – se derrama em que orifício, se escoa por que garganta, se barra sobre que pele, gerando gigantes e fúrias, melíades e telquines? Óreas, Ponto, Érebo, Éter e Hemera fundem-se e cindem-se em infinitas combinações sempre renascentes, a vida que se regenera, os átomos que se reorganizam, as partículas que serão as mesmas mas outras: earth to earth, ashes to ashes, dust to dust. Dele vieste, a ele retornarás. O corpo tem vontade de explorar.