«Even those born here want to leave» exclama Karin, personagem que Ingrid Bergman interpreta no filme Stromboli terra di Dio (1950) de Rosselini, enquanto desabafa os seus pensamentos contidos ao padre da pequena ilha.
Rosselini apresenta Karin como uma lituana deslocada que dá por si em Stromboli em busca de uma nova vida, vindo mais tarde a aperceber-se que as suas expectativas daquele lugar estavam mais próximas da ficção do que da realidade. A personagem de Bergman poderá ser uma representação fictícia, mas isso não a impede de se tornar numa representação do imaginário que brota do Mar Mediterrâneo, aquele que Karin fita, não em luta ou receio, mas no lugar de estrangeira desenquadrada num estado de incapacidade.
Margem intangível
Foi em Pizzo, naquela tarde do meu segundo dia na Calábria que conheci a Maristella. Estava em Itália a propósito da residência artística no Cinema Mele, naquela que se tornou a minha primeira estadia naquele país, e a primeira vez que vi o Mar Mediterrâneo sem que um ecrã intermediasse a experiência. Mencionei isto à Maristella enquanto bebíamos chá sentadas no terraço do Cinema Mele com o Mediterrâneo à nossa frente. Desde que chegara, aquele horizonte azul constante onde quer que estivesse no espaço do cinema que habitávamos, lembrava-me um projecto que fizera em 2014, tendo coleccionado imagens de webcams de Hotéis e resorts localizados nas praias mediterrânicas com maior fluxo migratório oriundo de África: Lampedusa, Itália, costa espanhola, sul de França e Grécia. As webcams ofereciam, em todos os casos, uma vista da praia e do mar até ao horizonte; ao ver essas imagens não pude deixar de recordar câmaras de vigilância que a FEDEX utiliza (entre outros meios) para localizar barcos de contrabando de imigrantes. Vinte destas imagens foram posteriormente compiladas numa edição de artista em formato de jornal, lançada no mesmo ano aquando de uma exposição individual no espaço «Escritório», infelizmente extinto, gerido pelo António Bolota. Mas isto fora em Fevereiro de 2014, numa altura em que a situação dos refugiados estava longe de ser um tópico tão presente nos media, muito menos para a maioria dos países europeus ou para as reuniões plenárias no Parlamento Europeu e das Nações Unidas. A Maristella acena com a cabeça como quem concorda que a situação era outra nessa altura, acrescenta que «como o Mar à nossa frente, as pessoas atravessam ondas, e esquecem», sugerindo que a situação ainda possa vir a retornar a esse estado.
Em 2014, enquanto observava as webcams, é provável que tenha passado por Vibo Marina, a vila onde Maristella trabalha, situada a um quarto de hora de Pizzo. Esta, ri-se com a ideia de existir uma webcam perto de si que transmita o live feed do Mediterrâneo que toda a vida olhou. Pergunto-lhe se considera a possibilidade de as pessoas com quem diariamente trabalha terem também seguido essas imagens, mas a ideia de alguém as ver antes de embarcar num barco que as transporte da Líbia até Itália, perturba-a.
Posicionamento intangível
Prosseguimos a conversa acerca do meu interesse em nomadismo e migração, observados através da globalização e multiculturalismo no melting pot europeu, e como teve a sua origem em 2012 no decorrer de uma residência artística em Kassel, onde o trabalho desenvolvido resultou da colaboração com artistas não nativos aí fixados (oriundos da Áustria, Portugal, Brasil, Coreia do Sul, Irão, China, Quénia, Rússia, Argentina, Turquia, Japão, Bielorrússia, Bulgária, Ucrânia, Mesopotâmia), cuja vida tinha encaminhado para a Alemanha pelos mais variados motivos (estudos, trabalho, família, amor, guerra, censura, igualdade de direitos, etc.). Conto-lhe que também eu me mudei do país de origem, vivo na Áustria desde Outubro de 2014 onde actualmente realizo na Angewandte Akademie de Viena uma investigação sobre estes assuntos. Viena que inesperadamente se tornou um ponto de paragem deste fluxo migratório ubíquo com destino à Europa Central e Norte, que durante o passado Verão se tornou finalmente mediático.
Maristella nunca saiu de Pizzo, cidade onde nasceu, e tem ao longo do passado ano trabalhado no Centro Speranza, dedicado ao acolhimento de rapazes adolescentes que cheguem a águas italianas vindos da Líbia requerendo asilo. Descreve as suas responsabilidades no Centro como as de uma Comunicadora Cultural. Ser a única trabalhadora fluente em italiano, francês e inglês tornou-a na única pessoa capaz de comunicar verbalmente com os rapazes que aí chegam até que dominem o italiano. O Centro Speranza pode acolher até setenta rapazes entre os 16 e os 18 anos, mais comummente originários da Nigéria, Mali, Senegal, Guiné, Costa do Ouro, Líbia, Paquistão, Chade, Gâmbia, Marrocos e Camarões. Apesar do presente conflito, até àquele dia, o Centro nunca acolhera um rapaz sírio, lidando com uma migração que deriva na sua maioria de África, e que tem sido mais ou menos constante ao longo das últimas décadas. «A surpresa provém», diz Maristella, «do facto de que anteriormente não era dada tanta atenção a esta situação, apenas desde há quatro anos, quando os barcos começaram a chegar com maior frequência.»
Espera intangível
A História demonstra-nos como a travessia entre territórios em busca de uma melhoria de vida tem desde sempre sido um comportamento natural do ser humano. Desde há séculos que se atravessa o Mediterrâneo de barco, seja de África para a Europa, ou no sentido inverso. Em Itália, particularmente na região da Calábria, onde eu e a Maristella nos conhecemos defronte do mar, o avistamento ao horizonte de embarcações precárias transportando dezenas ou centenas de pessoas é tão natural como esse mesmo horizonte. Os italianos acomodaram o mar nas suas vidas, e com ele tudo aquilo que transporte, seja peixe ou gente. Este acontecimento «é um elemento da normalidade deste lugar, por assim dizer, e com ele os longos processos burocráticos de atribuição de asilo, e a demora na reacção europeia também se tornaram normais» acrescenta Maristella enquanto me explicava que o governo italiano deveria ser capaz de concluir o pedido de asilo no decorrer de um mês; contudo, na realidade, o processo estende-se ao longo de um ano ou mais. Um tempo de espera que tem forçado os centros de refugiados a adaptarem-se, e o Speranza não se diferencia disto. Durante esse período, e uma vez que os requerentes de asilo legalmente não estão autorizados a habitar outro local ou viajar, o Centro transforma-se na casa temporária desses 70 adolescentes, lugar onde dormem, cozinham, comem, se desentendem, choram, se reconciliam, amam, contactam a família, aprendem a língua e adquirem conhecimentos práticos e tecnológicos (mecânica, marcenaria, ferraria) que os possam ajudar a encontrar trabalho assim que dali possam sair.
Partida intangível
Legalmente impedidos de arranjar um emprego ou deixar o Centro Speranza até que a papelada burocrática esteja finalizada, a vida é passada entre o centro de refugiados e a vaguear pela vila de Vibo Marina. Na tentativa de reunir mais dinheiro para além da quantia que a bolsa de integração do governo italiano lhes possibilita, alguns mendigam, trabalham ilegalmente em pequenos biscates, ou acabam envolvidos no universo da prostituição e tráfico de droga, contribuindo assim para a má impressão que deles os locais possam já ter. A maioria não deseja habitar o Centro: não coaduna com a imagem que haviam criado de como as suas vidas seriam, não foi isto que ouviram ser descrito antes de partirem. Consequência deste sentimento, a maioria não pretende permanecer em Itália, e aguarda ansiosamente que o ano termine para que possam seguir para Norte. Não consigo evitar pensar se a pior parte da sua viagem para a Europa será a travessia do Mediterrâneo ou chegados a Itália, terem de lidar com a sensação de que a sua viagem acaba de começar.
Azul intangível
É difícil escapar à visão do mar a partir do Cinema Mele, construído no topo de uma escarpa, o Mediterrâneo rebenta as suas ondas nestes alicerces naturais do edifício. Todas as manhãs acordava para o horizonte azul do lado de fora da janela, e à noite, sentada no terraço, ouvia essas ondas a bater e sentia a brisa salgada que consigo transportava o fresco cheiro a maresia. Não era necessário ver o Mar para saber que ali estava. No interior do cinema, a branca tela de projecção está voltada para o Mediterrâneo, do centro do palco olhando a plateia vazia é possível ver esse horizonte azul ao fundo através de uma janela. O Cinema Mele foi durante décadas lugar para projecção de histórias e ficções, o Mediterrâneo é esse lugar desde há séculos.
Na manhã seguinte embarquei numa viagem de barco até Stromboli, o vulcão dista três horas da costa. Momentos após a partida, recordo imediatamente o filme de Rosselini e a cena durante a erupção, quando os habitantes da ilha correm para os pequenos barcos e remam até à costa de onde, em segurança, esperam que a natureza acalme como espectadores da sua fúria sublime. Esta imagem surge-me no pensamento enquanto navegamos junto de dezenas de barcos da Guarda Costeira Italiana que dispostos em linha parecem aspirar a fazer parte de uma cena no cinema italiano. É contudo uma linha que marca com clareza dois territórios, um acontecimento pouco usual em águas marítimas.
Mais presentes do que a visão de uma montanha negra no meio do mar sobrevoada por nuvens e fumo, foram as nove horas passadas rodeada por água, decorridas entre a estadia no barco e o tempo a visitar a ilha. Nove horas a observar o movimento e as variações de tonalidade que o mar adquirira ao longo desse período de tempo. Não é possível descrever o Mediterrâneo apenas como sendo azul.
Encontro intangível
À semelhança de Karin em Stromboli terra di Dio, a frustração decorre do esforço em tentar fazer parte de algo, de chegar cada vez mais perto, mas falhar em ser aceite, pelo menos para já. Tal como os jovens que habitam Speranza e que, embora na Europa, não são autorizados, por enquanto, a usufruir da liberdade que existe fora do sistema burocrático que a concede. Maristella convida-me a visitar o Centro, quer apresentar-me aos restantes trabalhadores e a alguns dos rapazes que aí vivem, considera que a minha presença possa ser positiva para ambos, eles e eu. Esta intenção rapidamente se torna inatingível na manhã seguinte, uma vez que os seus superiores não me autorizam. Sem mais explicação, simplesmente não poderia entrar. O sistema legal italiano proíbe-me a visita ao Centro, o mesmo sistema legal que impede os refugiados de visitarem uma vida fora de Vibo Marina. Para cada impedimento existe um desvio, e nesse mesmo sentido Maristella ofereceu-se para criar um acesso àquele lugar intangível, estabelecendo uma comunicação online entre mim, os rapazes e os outros trabalhadores, que ela mesma mediaria.
Chegada intangível
No decorrer da primeira troca de emails e chamadas por Skype com a Maristella e alguns dos rapazes no Centro, volvia ao dia em que visitei Stromboli e à impressão intensa com que ficara do Mediterrâneo, as suas subtis alterações de cor ao longo do tempo. Ao me ouvirem através do ecrã a descrever essa experiência, os rapazes conseguiam compreender melhor do que ninguém ao que me referia, tinham-no atravessado, tinham-no visto de uma margem a outra, tinham-no visto de dia e de noite, tinham-no adorado e odiado, e tinham-no superado. Sigo a explicar o quanto me honraria poder colaborar com eles num projecto que reflicta as nossas impressões acerca dessas experiências individuais, ao que vários reagem com um impulso positivo. Por intermédio da Maristella, temos mantido contacto desde o dia 16 de Outubro, trocando impressões dessa memória que partilhamos em comum: a cor do Mar Mediterrâneo.
Como descrever a experiência de atravessar o Mar Mediterrâneo através da definição da sua cor, ou como definir a cor do Mediterrâneo através da descrição de uma viagem sem mencionar a cor azul? « – Even those born here want to leave» é o trabalho actualmente em processo que tenho desenvolvido a partir desta questão e das experiências acima descritas, que procura definir a cor do Mar Mediterrâneo baseado na experiência de o atravessar, não necessariamente sintetizando uma experiência única. De uma das primeiras chamadas de Skype que realizámos, recordo o comentário que um dos rapazes fez após me ter ouvido falar « – Na Líbia o mar é negro, e na Itália é azul».
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Imagens:
1. Vista do Mediterrâneo a partir de uma webcam instalada num barco navegando ao largo da Líbia (fonte: www.webcamgalore.com)
2. Cena da erupção, Roberto Rossellini, «Stromboli Terra di Dio», 1950 (fonte: Youtube)
3. Vista do Mediterrâneo a partir de uma webcam instalada num barco navegando ao largo de Itália (fonte: www.webcamgalore.com)