TURVAR
O sexo era matéria pesada, façanha enclausurante. Fazê-lo ou não nada importava no momento em que ele podia acontecer, e importava muito no passado que o futuro traria. Perdidos o fulgor reflectido do olhar um do outro, o timbre afectuoso que as suas vozes não reencontrarão. Isso é a distância que se franqueou, como os passos da visita que se demorou de mais, impregnando-se da rotina do chão alheio. Livra-te de dar a perceber o hábito simples que também és, que te envolve e alicerça, criatura estruturada por umas quantas verdades de brilho variável, nem sempre legíveis, nem sempre narráveis. Saber onde desaguam os sonhos revoltos, que língua falar a quem se admite na intimidade, a dor que virá no segundo desvelado de um rosto.
CARNE D'ONTEM
Não mais represado, eis jorrou o teu líquido — vertia-lo ao acaso das noites incógnitas, as tuas fibras absortas, fugientes, ansiando a esquina seguinte, indiferente à resina no passeio, à lembrança do âmbar e do insecto coloidal, ao eflúvio acre da gingko bilobo, à fêmea onde penetras outros mistérios, tudo sacudias num rasto espumoso, arfando incandescente de olhos fitos no quadro vivo da carne da véspera. Post-coitum, o animal melancólico de sempre. Dirão que fomos feitos pelo sexo, feitos para o sexo. Que resposta para isso?
PSIQUE PROTESTA
Monte de Vénus lhe chamastes e é desde então que se me cresta a fronte de despeito pela orografia que o seu nome deprime, pela infeliz escolha que para referir o sagrado tremor a evoca, a essa embusteira parida num mar qualquer, mais a sua seita archeira, esvoaçante, mesquinha. É minha a última duna livre das suas armas, dos seus pretextos, dos seus limites — percorro-a ainda incólume, imune ao veneno que porém me atormenta, o desse nome que infecta o mundo de engano, de sujeição. O último monte sou eu, erodo-me no frémito vulcânico que a ela atribuís.
CANTIGA DE AMIGA
A meio do passeio quis fodê-lo. Não concebi o acto ao sabor desse verbo, pois não me agrada a sua masculina arrogância, mas confesso que então não me ocorreu o muito mais adequado ajaezá-lo. Enfureci-me com a sua evidente incapacidade de avaliar a disposição pouco missionária em que me encontrava e apeteceu-me ali e então chicoteá-lo pela sua delicadeza orgulhosa, incompreensiva e francamente medíocre. Não o ajaezei, porém. Habituada à brusca supressão do meu entusiasmo, prossegui impecavelmente a conversa, permeada de risinhos ventriloquados, implausíveis afinidades e medonhos assentimentos, que nos levaria às horas de chá e bolinhos de maçapão.
MIDSOMMAR
A alcateia rondava, vizinha do pastor a tanger melodias futuras, domando o frio longe da fogueira que aquecia o escasso rebanho. O seu canto só às lobas chegaria, e ao cabrito azul que sonhavam cobiçosas, e que as ninfas aguardavam. O rumor da água colava-se à silenciosa conversa delas e à voz macia de Oberon a recitar o livro da noite. Foi então que a fiandeira avistou estrelas de esperma e sentiu um universo por vir.
DESACERTO
Não o rejeitara quando pôde, e com isso afastou-se mentalmente do mundo que a acalentava. Mas ele, sempre vago e sempre fosco, permanecia um mistério. Vinha de onde vinham os homens do seu mundo, amarados no fundo de uma falésia a pique, imóveis como rochedos, aparando sem remédio a frescura e a violência das marés. Não o conhecia e pertencia-lhe, tanto como o seu jardim que diariamente ele espreitava, e não ousava interpelá-lo com receio de que abandonasse os seus sonhos, deixando-a novamente sozinha, amadora sem amado. Certa tarde desceu ao jardim. Ele apareceria, ela apresentar-se-ia, e ambos perder-se-iam enfim, na cama rolante de um filme de Pierre Étaix. Como ele tardasse, ela partira à mesma, estrada fora no seu leito móvel, esperando recolhê-lo no caminho — sem jamais o encontrar. Ele preferira o quarto que ela deixara. E recolhido, entediado, no longo Verão frio dos exilados, ignora a amante que o procura nos recessos de sonhos não correspondidos.
AQUILES NO PARÁ COM PENTESILEIA
O teu seio direito queimado — e nem por isso, canhota que és, me alvejarás melhor. O que te inspiro é a dúvida do rio a que pertences, e por que margem cavalgar uma vez terminado o reconhecimento dele. Eis-me então no teu caminho, e de nada te valem as certezas que alardeavas, não me possuirás, não deitarás o meu corpo exaurido aos habitantes do rio, que outrora transbordava sazonalmente do barro de monstros esquecidos. Olhas-me e o meu peito acelera, olho para o teu seio singular e pressinto-lhe o gosto, que mais poderei saber de ti, se trôpega te afastas, se te lamentas numa mistura de Grego e Hiscariano, que a tua tribo adoptou por amor de bizarros genitivos e ordenamento interno das frases, se te deténs e te deitas para desistir porque é tarde de mais, é sempre tarde de mais para aqueles a quem a vida apanha na margem. Então tropeço na raíz da sumaúma para onde me atraíste. O rio, esse, conhece os caminhos invisíveis da sua história.
A TELA
A pele que não te pertence é o início do desejo. É ideia tua, tela onde decorre a projecção da tua memória impressa de formas, movimento e fisionomia, à qual reage o depósito químico que és, que somos, e que contrariamos com o espírito que lamenta essa carne, o que em nós há de orgânico e que no nosso futuro ciborgue ainda perturbará o ser puramente eléctrico a que aspiramos.
TENSÃO
A voz grave do actor do filme, o seu sorriso de afável virilidade, o olhar encastoado de memória bizantina, retardavam a mão dela, que queria explorar o tweed do peito do namorado mas em vez disso lhe roçagava a flanela do estômago. O namorado, entretanto, ponderava o problema de adivinhar o repertório que a satisfaria. Ela então mordeu-lhe o pescoço, num movimento decidido, enquanto a mão lhe apertava o membro entumescido que, prematuramente, humedeceu o balde de pipocas entalado entre as pernas. Ela suspirou e recostou-se na cadeira, e daí a pouco os dois rilhavam milho em uníssono com o wilhelm scream ou lá o que eu costumo desabafar na proximidade desses pássaros.
IDEIA DE BENEŠ
Ao distanciar-se da sua obra Milenci (Amantes, 1969-70), o artista apõe-lhe uma camada. Uma barreira, um véu. Esse seria o instinto inevitável na Checoslováquia que vira esmagada a sua Primavera. Vlastimil Beneš vela. Não é do seu estilo que ele se afasta — a tela é sua, se possível acrescida de uma crueza obscena que ele não usa noutra pintura erótica, Os Amantes no Quarto Verde, quando figura a cópula sob a égide da cor que circunda os dois amantes, omitindo os seus rostos. Mas agora Beneš dá um passo atrás, procura uma perspectiva de fora, constrói uma mise-en-abîme. Com isto ele não abandona a sua obra, antes previne o abandono que virá. Comenta e documenta a transgressão que ela contém, que ela exerce, que ela terá de sofrer. A sua realidade é sucessivamente póstuma, ao contrário do que regista: a promessa de um prazer síncrono, especular, por consumar. O quadro de Beneš é suspensão do tempo, da fruição, das consequências. É acto que será — depois do degelo.
DE TARDE
A morte do coração pairando acima, comprimindo o tempo extinto dos amantes. A tarde lacera os propósitos civis, o silêncio ressoa como um brinde sem sentido, trazendo fatias de diálogos havidos, retrabalhados pela memória que vai perdendo as feições, a vida é um lego que se desmonta, um puzzle que se separa e extravia, a vida desfaz-se e o único lenitivo para o torpor que não tarda é essa alegria visceral de desobedecer e sabê-lo ninguém; não praguejar, não esperar, não celebrar os fantasmas, deslembrar, deslembrar mais, há uma volúpia na ausência, há uma festa da renúncia onde se celebram as estradas de onde regressámos e os mares que persistem e brilham secretamente como olhos banhados de luar.
Modelo: Anna Williams