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Em 2012, dois professores universitários aposentados, amigos de longa data, aceitaram o meu convite para conversar sobre as suas vivências da intimidade em finais dos anos 1960, em Portugal. Juntámo-nos em Sintra. Na casa dele. O dia era de inverno. Eu trouxe uma sobremesa para o almoço. Ali ficámos a tarde toda, a ver o fogo consumir a lenha. Ele tinha 26 anos em 1969. Ela tinha 23. Nascidos em Lisboa, num contexto social favorecido, viajavam, liam e discutiam política, cinema, literatura nos cafés da Praça de Londres, e não só. O que se segue é uma pequena nesga dessa conversa. Mas antes de lhes dar a palavra, deixo quatro apontamentos que ajudam a pensar este final de década, tão inspirador do desejo de autodeterminação no género e no sexo.
Um ano antes de chegar à Presidência do Conselho, em 1967, Marcelo Caetano publica um artigo sobre a juventude. Está preocupado com as novas liberdades de interação quotidiana entre rapazes e raparigas, com o convívio despreocupado na praias e piscinas, com a exposição do corpo, com o desamparo em que ficam crianças e adolescentes, sem as mães exclusivamente dedicadas à sua educação e guarda.
Em Março de 1968, dois meses antes das revoltas juvenis em França, a Revista O Tempo e o Modo publica um caderno sobre o Casamento, que a censura se apressa a apreender. Helena Vaz da Silva e Alçada Batista convidam advogados, engenheiros, professores, psicanalistas, filósofos, jornalistas, sacerdotes, teólogos e escritores (sobretudo homens, mas algumas mulheres) a pensar o sexo entre solteiros/as, os limites da exploração erótica no casamento, a fidelidade e o divórcio. Há entre estas reflexões, quem fale de uma revolução sexual em curso no mundo, longe do panorama português.
Em 1972, três mulheres escrevem que é «tempo de se gritar: chega». E de formar «um bloco com os nossos corpos». Vale muito a pena regressar às Novas Cartas Portuguesas, de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa, e procurar a procura feminina pelo prazer sexual, uma das dimensões da luta das mulheres pela sua emancipação política e social:
«[…] a mulher vota, é universitária, emprega-se; a mulher bebe, a mulher fuma, a mulher concorre a concursos de beleza, a mulher usa mini-maxi-saia, ‘hot-pants’, ‘tampax’, diz ‘estou menstruada’ à frente de homens; a mulher toma a pílula, rapa os pêlos das pernas e de debaixo dos braços; põe biquíni; a mulher sai à noite sozinha, vai para a cama com o namorado; a mulher dorme nua, a mulher entende, já sabe o que querem dizer certas palavras, tais como: orgasmo, pénis, vagina, esperma, testículos, erecção, frigidez, clitoris, masturbação, vulva. As mulheres entre elas, na intimidade das retretes de repartições públicas onde estão empregadas, nos recreios dos liceus, nas universidades, nos quartos, nas salas, à porta fechada, até já contam anedotas obscenas, certos pormenores íntimos de cama e em segredo tomam certas liberdades de linguagem, e assim se modernizam, se libertam, se promovem… Eis-nos, pois, irmãs, em plena era da liberdade da mulher portuguesa… […]» (Barreno, Horta e Velho da Costa, 1974, 285-286).
Ele & Ela
Ele – Em 1968 li pela primeira vez [Herbert] Marcuse. Tinha muito a ver com uma certa ideia de festa, de libertação do corpo, mas isso só chegou a ser entendido em Portugal mais tardiamente. Estávamos muito agarrados a uma luta de resistência, de vitória política sobre a ditadura do Salazar e do Marcelo [Caetano]. Os problemas da sexualidade não eram muito associados a uma revolução política. O sexo como prazer era vivido como uma questão individual. E as nossas concepções eram muito marcadas por uma misoginia que vinha muito de trás. O que o Maio de 1968 vem trazer é a politização do que era de ordem pessoal. Eu não estabeleceria de qualquer modo uma relação muito direta (a não ser muito longínqua) entre algum modo de alteração dos percursos sexuais individuais e o Maio de 1968, embora a atmosfera existisse... o zeitgeist.
Tirando franjas minoritárias, a ideia da libertação, do corpo, do prazer individual, não teve expressão verdadeira.
Ela – Nós realmente éramos uma minoria. Essa minoria leu o Marcuse, o [Henri] Lefebvre, o próprio [Wilhelm] Reich, com a ideia da revolta sexual da juventude. Nós, como geração, uma franja da média burguesia, intelectual, nós somos muito marcados por isso. A repressão era enorme. Eu tive um projeto com amigos, de alugar uma casinha em Alfama, que era a casinha das quecas. A gente não dizia das quecas nem das fodas. Era a casinha de ir fazer amor. Acho… acho que foi a nossa geração que começou a dizer. Não sei como se dizia... usava-se assim uns termos mais técnicos: ter relações sexuais.
Ele– Ir para a cama.
Ela – Ir para a cama. Foste para a cama? Era isso que nós perguntavamos às amigas. Não se podia levar ninguém para casa (eu também não deixei os meus filhos levar ninguém lá para casa, mas eles já iam passar fins de semana fora, tinham muito mais liberdade). A gente não tinha. E havia o medo de nos irmos registar num hotel. Não se podia ter uma vida sexual normal, era impossível. Para nós, a teoria era o Reich e o Marcuse, o Lefebvre, a Simone de Beauvoir, o Roger Vailland, o Cardoso Pires, com a Cartilha do Marialva, que dava – a nós, mulheres – para catalogar um gajo. A gente tirava as medidas ao marialva e o marialva era para deitar fora! Era cá-cá! Não interessava. Tínhamos muito essa ideia de ter relações sexuais muito sinceras, demasiado sinceras, tínhamos a ilusão da transparência. De contar o que se andou a fazer numa amourette de férias algures! «Fui a Paris, arranjei lá uma namorada e fui para a cama com ela». Isto lixava completamente a relação. Era uma irracionalidade. Uma aberração! A gente engolia sapos, pedras, e tudo o que fosse preciso. E depois também fazíamos. Ou há moralidade ou comem todos. Havia o cânone de que a pessoa tem de ser progressista, tem de fazer como mandam os livros. Era a nova bíblia. Um pensamento de caris mágico-religioso, de alguma forma. A história das ditas relações abertas eram a prefiguração do inferno. Uma pessoa não pode estar com confiança, quando sabe que de repente há uma amiga ou um amigo à esquina, com quem se vai dar uma queca, sair, jantar, o prato completo, como a gente dizia. E a outra pessoa tinha que aceitar senão era marialva, reacionária e por aí fora. Comigo não funcionava!
Ele – Eu nunca tive essa experiência da relação aberta. De onde vinha essa vaga?
Ela - Acho que isto tem muito a ver com meios. E à medida que o tempo avança há uma penetração dessas ideias, já não tão teorizadas, em meios urbanos e tal. Mas há uma coisa que a gente não se deve esquecer. A pílula. Facilitou imenso a vida. Às vezes leio aqueles romances do século XIX, com as senhoras a darem quecas à esquerda e à direita, e penso: «Que horror, que medo!» Quanto desejo, para correrem aquele risco todo! Claro que tinham técnicas, mas essas não dão gozo.
Ele – Naquela altura era impensável que a família viesse falar connosco sobre questões da sexualidade. Os meus pais ausentavam-se, e numa ausência recebi em casa uma senhora com quem tinha uma relação «profissional» educacional. O padeiro viu-a sair às 5 da manhã e foi dizer ao meu pai, que pensou que era uma prostituta, e deu-me um raspanete por ter trazido a mulher para dentro de casa. O grande problema destas revoluções sexuais (ou destas mudanças sexuais) passa pela necessidade de educação. Devíamos ter uma educação para a vida e para a sexualidade. O jovem e a jovem deveriam ter a possibilidade de ter a sua iniciação com alguém mais velho, que tivesse alguma experiência, que pudesse ensinar (e não com a prostituta).
Ela – Aí teriam de ser vários, porque cada pessoa na cama é diferente. Saber mexer-se na cama é uma coisa que se aprende. Nós éramos muito novos. A gente ia aprendendo na prática, e ia reclamando, enfim, ia orientando. Quero assim não quero assado. Não faças assim, faz assado. Acho que é preciso uma certa capacidade de verbalização.
Ele – Nos anos 1970, da parte da mulher talvez já começasse a haver a consciência, pelo menos das carências, da falta de reciprocidade no prazer. Nas a norma dominante era muito a do camponês, do «truca truca», e a mulher nem abria a boca. Já está. Isso era talvez a norma. Em grupos mais cultos começa a aparecer... essa consciência. É uma zona capaz de ser ainda complicada em muitos casais. A sabedoria está muito nessa capacidade de compreensão, de sentir como o outro…
Ela – Acho que não é preciso falar muito. São os corpos que falam.
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Referências:
Caetano, Marcello. (1967). «Juventude de hoje, juventude de sempre». Rumo (Separata), 126: 5-21.
Casamento, Cadernos O Tempo e o Modo, 2, Março de 1968.
Barreno, Maria Isabel; Horta, Maria Teresa; Costa, Maria Velho. (1974). Novas Cartas Portuguesas. Lisboa: Futura.
Imagem: Sofia e a Educação Sexual, Eduardo Geada, 1974 (still)