uma ideia de despedida
1.
volto a ler o teu convite. espero por uma ideia. não faço nada. depois a ideia vem. e depois de falar contigo tento pô-la em prática, mas em vão.
gostava de te dizer que andei a deambular pela cidade à procura de alguma coisa para te contar, para te propor. nada. a vida tornou-se mais segura aqui, fora das ideias, dentro das palavras.
disse-te que queria apagar algumas informações sobre mim. coisas às quais qualquer um pode ter acesso. também isso não consegui. disseram-me que não é possível apagar-me, que é demasiado tarde para isso, que a única forma de morrer online é deixar de ter relevância, é ficar esquecido. mas nós sabemos lá se o que uma vez foi esquecido não volta a ser lembrado.
basta uma onda sonora para que comece o motim.
2.
passaram dois meses. não cumpri a promessa. não sei que relação tenho com o tempo. não sei se lhe dou utilidade – e embora goste de pensar que essa é a forma ideal de lidar com ele, de repente há um rosto estranho que o espelho devolve, e uma sensação de que alguma coisa ficou a faltar. a sensação de não ter cumprido uma promessa.
dois meses – uma espécie de morte. escrever-te agora reaviva-me. porque de alguma forma este é o começo da promessa que se está a cumprir.
3.
num documento com o mesmo nome que esta carta que te escrevo, entre outras coisas, estava uma pequena lista:
apanhar lixo na praia
ajudar um pássaro a voar
desligar o router
virar a página de um livro
abraçar um corpo terrano
tudo coisas que fiz sem as ter prometido.
o resto eram inícios – um documento cheio de inícios que não chegaram a lado nenhum, não cumpriram nenhum objectivo.
fiquei à espera que o tempo falasse comigo.
4.
dois meses sem amar. (fico à espera que falem comigo).
escrever uma carta, preencher o vazio. passar uma noite em branco.
a noite toda a preencher o vazio de um amante, desligado do resto do mundo.
no documento com o mesmo nome que esta carta que te escrevo afirmava: offline é desaparecer. e depois perguntava: offline é desaparecer? (nesta ou noutra ordem qualquer).
5.
há dez anos atrás escrevi um texto para um espectáculo sobre desaparecer. uma carta que se tornou texto que se ouvia no escuro sobre desaparecer. sobre querer desaparecer. pensei então que era isso: publicar esse texto. ainda por cima depois de o ter revisitado dez anos mais tarde – foi há dez anos que foi escrito.
mas também não era isso. mas era quase isso.
esse texto sobre perder a relevância, sobre ficar esquecido.
espécie de testemunho e de testamento.
6.
o que te proponho é um fragmento – é isso que eu sei propor sempre.
o fim do espectáculo. o fim também de uma ideia de mim. ou seja, uma ideia de fim do mundo. uma ideia de despedida – porque raramente é mais do que isso.
porque é que estarei sempre a ameaçar dizer de vez adeus?
uma nostalgia pelo analógico. ou seja, por uma forma de conhecimento. o medo que alguma coisa dele se perca. provas de como passou o tempo, mas também de que tudo mudou muito pouco. quase nada. e até isso está lá, nesse texto. texto – há dez anos que foi escrito.
7.
e se escrever é colocar no exterior o que estava dentro, então é falar sozinho.
pergunto.
offline é muitas vezes falar sozinho.
offline é também pensamento ecológico. reciclar. reapropriar. aproveitar tudo até ao fim. é assumir a segunda mão – que se mantém tão ou mais relevante do que a primeira. é dizer: já estava tudo dito.
é deixar de utilizar o tempo.
8.
agora, a pergunta que mais me assombra, de forma persistente, é: para quê?
para quê fazer, fazer mais? para quê criar? é a pergunta que está sempre latente.
talvez para saber se vale ou não a pena. resta sempre a dúvida.
se calhar, vale a pena fazerem-se coisas que não valem a pena fazerem-se.
resta o que nos resta sempre quando falha tudo: o sol, o mar, a praia, as páginas dos livros, uma mesa rente ao chão onde partilhamos alimentos. o riso. e o amor comum a tudo isso – essa expansão para além dos limites do corpo. uns pelos outros.