Este texto não serve como apresentação da obra de Jim Sanders. Nem tão pouco servirá como tentativa de enquadramento do seu trabalho no contexto artístico contemporâneo, sublinhando a sua importância, profundidade, coerência e pulsação própria, dentro de um circuito que alguns apelidaram como outsider art. As fotos que seguem a este texto (capturadas pelo próprio artista), documentação de uma parte ínfima do seu trabalho, não vão elucidar completamente o espectador quanto à obra de Jim Sanders, caracterizada por um movimento de permanente reconstrução, multiplicação, recuperação, adensamento, num processo de continuidade com os temas e obsessões sobre o desejo e a morte, o sagrado e o profano. Capaz de actuar com reactualização e liberdade permanente, Sanders faz com que os seus trabalhos tenham uma qualidade atemporal e por isso, não poucas vezes, incapturável.
Jim Sanders procura incessantemente, através da escultura, assemblage, pintura, desenho, performance, instalação e no palimpsesto possível por ele próprio no cruzamento de todas as formas, procura como se uma criança e um ancião o habitassem – ao mesmo tempo no mesmo corpo. Os seus trabalhos aparecem divorciados dos esquematismos, presunções e previsibilidade que caracterizam muito dos simulacros, actuações e produções da arte contemporânea. Jim Sanders é um artista raro, contínuo, incategorizável.
Vi pela primeira vez um quadro-escultura seu na casa de um amigo em comum - o escritor galego Xelís de Toro. Um quadro que fazia estremecer a luz da sala daquela cave. Depois desse primeiro encontro, lembro-me de estar a caminhar por entre um conjunto de esculturas totêmicas, numa exposição numa galeria em Brighton, e de começar a identificar outras obras que iam sendo disseminadas em forma de pintura, murais ou instalações, em alguns lugares na mesma cidade. Os trabalhos de Jim Sanders revelavam-se intercomunicantes, ainda que distantes, independentes colaboravam entre si de forma silenciosa.
Uma noite fomos à casa do Jim. Na altura, ele estava a pintar figuras humanóides, algumas delas metamorfoseadas em pássaros, com acrílico sobre sobre lona, em grande formato. Esta produção ocupava a totalidade das paredes e chão de duas salas, estando sempre algumas pinturas frescas, a secar em primeiro plano, penduradas como bandeiras pesadas. As figuras apareciam sempre na companhia umas das outras, à espera que a próxima figura fosse produzida, num exercício mágico e celebratório. Na altura, as suas esculturas em madeira (que cruzavam cães gigantes com andores de procissão) e os seus pequenos altares de objectos encontrados ocupavam grande parte das superfícies da casa de banho e da cozinha. Havia um gira discos e a luz baixa em algumas partes da casa fazia com que as figuras quase religiosas das obras dançassem. Ali podiamos ter acesso a uma realidade ampliada, em várias escalas da obra de Jim. Cada degrau e recanto da casa era (e é) o arquivo, o depósito, o atelier, a obra em constante processo.
Lembro-me também de um espectáculo em que o público entrava no espaço da peça, atravessando uma tela de lona gigante com uma figura pintada por Jim.
Passaram-se talvez uns dez anos e, desde então, Jim Sanders tem ele próprio entrado cada vez mais na sua tela, através um sincretismo próprio, movido pela ecologia e pelo cósmico, começando a repintar, reesculpir, desfragmentar, fazendo desaparecer na obra aquilo que é acessório, dando espaço cada vez mais à poética comunicante que construiu. Ainda há pouco tempo, muitas das suas telas em acrílico foram ripadas e transformadas em fatos que nos fazem lembrar indumentária pastoril ou shamânica e que, objectivamente, concentram muitas obras e vozes no interior. E vimos Jim Sanders aproximar-se de casa como se da floresta. A desaparecer no atelier como na obra. A ir pelo quadro adentro. A desaparecer. A voltar à floresta e a recolher os materiais para a obra que habita.
Bruno Humberto