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The earth's surface and the figments of the mind have a way of disintegrating into discrete regions of art.
And the movie editor, bending over such a chaos of ‘takes’ resembles a paleontologist sorting out glimpses of a world not yet together, a land that has yet to come to completion, a span of time unfinished, a spaceless limbo on some spiral reels.
As citações em epígrafe são de Robert Smithson e assinalam a relação entre o cinema e a construção do filme Spiral Jetty (1970), filme homónimo da obra (de sal, rochas e lama), que Smithson criou no Great Salt Lake no Utah. O projecto Spiral Jetty, era um projecto complexo que compreendia a criação do earthwork – a jetty – o filme homónimo, o texto que Smithson escreveu em torno da experiência da produção e filmagem de Spiral Jetty, e a criação de um cinema underground que se localizaria numa caverna debaixo de terra e projectaria apenas o filme da sua própria construção. Objectos artísticos independentes podemos, no entanto, pensar o filme citado como mais que uma mera documentação do processo de construção da jetty. O filme é, proponho, uma obra de cinema expandido que articula as preocupações de Smithson relativamente à arte e à grande narrativa da matéria que o cinema lhe permitia construir. Pois o cinema parece ser para Smithson uma técnica (uma poiética) assente num conjunto de operações que usam aparelhos (o olho da câmara é uma figura preferida do artista) e permitem o ordenamento dos fragmentos dispersos de destruição em que a natureza se tornou e que o cinema pode ordenar.
Robert Smithson foi um escritor prolífico e os seus textos permitem localizar determinados conceitos e temas que esclarecem o que considerava ser o estado cinemático do real – decomponível e captável pela câmara – e cujo potencial criativo se podia agenciar por via da montagem. Potencial criativo é aqui sinónimo da demonstração das temporalidades que coexistem na matéria e transformação da mesma na sua tradução em imagens em movimento[1]. Em Smithson, o cinema é uma construção, um levantamento das obscuridades da matéria, um procedimento técnico que devolve sob uma outra forma cinemática, o cinemático que se encontra à superfície do real. Relata em A Tour of the Monuments of Passaic, New Jersey (1967): «Noon-day sunshine cinema-ized the site, turning the bridge and the river into an over-exposed picture. Photographing it with my Instamatic 400 was like photographing a photograph. The sun became a monstrous light-bulb that projected a detached series of ‘stills’ through my Instamatic into my eye.»[2]
Frequentador assíduo de cinema, sobre o qual escrevia amiúde, a relação de Smithson com as imagens em movimento parece assentar, por um lado, numa concepção produtiva do cinema no sentido em que a câmara era considerada uma técnica para o artista, e por outro, nas possibilidades cinemáticas de articulação e reflexão das várias temporalidades que Smithson via assistirem ao mundo e à mutabilidade da matéria. Mas como, no contexto de uma experimentação alargada com a imagem em movimento que entra no espaço da galeria e no movimento que a escultura faz para fora do pedestal, classificar este cinema expandido? O que interessava a Smithson era o corte, a montagem, o reordenar dos planos e dos movimentos, de forma a desconstruir o espaço e apor em estratos o tempo. O cinema não é, em Smithson, o que este apelidava de racionalismo, isto é, naturalismo, mas antes uma relação com a matéria (material) que é a diegese dos filmes, um espaço geológico que considerava ter com o cinema uma relação transitiva e que, porque os marcadores arqueológicos do filme da jetty são o passado e o futuro, levam ao ecrã um «espaço qualquer».
Não se trata aqui então de pensar o carácter agregativo do dispositivo cinematográfico mas de pensar temporalidades e a inscrição que a matéria pode fazer num filme e vice-versa. Este poderá ser um salto imaginativo mas que se afigura pertinente. Na prática cinematográfica de Smithson existe um transpor da dialéctica Site, Non-Site (lugar, não-lugar). Genericamente, o Site é o local de onde se subtrai algo que é depois colocado no Non‐Site, este respondendo assim a um princípio de adição. O Non‐Site contém o Site e remete para ele e vice‐versa, (o grande torna‐se pequeno, o pequeno torna‐se grande. Esta questão da escala era aliás algo que fascinava Smithson em relação ao cinema – no cinema «tudo está fora de proporção», dizia). O filme Spiral Jetty funciona como um equivalente da escultura e a escultura funciona como um equivalente do filme. As metáforas usadas por Smithson são cativantes nesse sentido, a abordagem a um lugar, a uma paisagem enquanto um espaço cinemático, feito de luz e som, passível de ser recortado pela câmara e reorganizado, realinhado pela montagem.
O historiador de arte George Baker[3] vê na dialéctica do «lugar/não-lugar», o desenvolvimento de um «cinema model» que deriva do interesse de Smithson pelas estratégias de representação do cinema. A dialéctica do Site e do Non-Site e a decomposição e recomposição de fotogramas do filme Spiral Jetty nas páginas da revista Artforum são sinónimo de um «modelo» do cinema a partir do qual se pode pensar a arte. É a exploração do «potencial relacional» do cinema que Baker vê actualizado no filme Spiral Jetty, que faz do cinema o epítome de uma «lógica de vectorização», que compõem um plano de imanência a partir do qual a associação de imagens se serve da lógica do interstício, desse corte que não obedece a uma lógica de continuidade, não é sinónimo de um espaço indivisível e de um tempo linear, mas de uma expansão do invisível na matéria para uma lógica de tempo e movimento que só podem ser revelados pelo cinema.
A diegese do filme mostra-nos a construção da jetty, como sendo uma imagem geológica da terra que Smithson trouxe à imanência do mundo e leva-nos numa viagem. Chegar ao local da jetty pelo filme é ir atrás no tempo, é efectuar uma viagem mnemónica. O filme de Smithson é a antítese do cristal perfeito, sublinhando antes, «a decentered, fundamentally entropic temporality that seems to insist that time cannot be considered a function of the subject but is rather the subject that comes to be always and only through its temporalization»[4]. Imagem estratigráfica deleuziana que Smithson complica, pois vê inscrito na temporalidade das imagens e das coisas os sinais do futuro enquanto trabalha uma iconografia e um imaginário que remete para o passado, com a referência a dinossauros, cavernas, etc. Na paisagem arruinada de New Jersey, olhando para os escombros de obras abandonadas, Smithson sublinha que as ruínas são o sinal da potencialidade por realizar, são ruínas ao revés, dali nada se criou.
Perceber o filme Spiral Jetty a partir de conceitos de temporalidade cinematográfica e tempo histórico é uma leitura cativante. O cinema é para Smithson um «Archeozoic medium», o que deverá ser entendido como mais que uma simples tradução do interesse de Smithson pela matéria e os tempos da terra, mas antes o sublinhar de uma condição do analógico no cinema: o filme e a obra são transitivos, presente, passado e futuro são concomitantes. A abordagem de Smithson não é teleológica, há uma tensão, que impede o fechamento da obra. O cinema, feito de etapas e pedaços de equipamento que se agregam para compor um filme, estando assim em risco de transformação, é portador dessas mesmas temporalidades não-síncronas.
A declinação da obra Spiral Jetty num filme autoriza uma relação espacio-temporal da obra de uma forma distinta. A escala de planos e o jogo de temporalidades que assiste à construção e experiência da obra, efectivamente transformada por uma diegese que inscreve no filme uma temporalidade geológica e um espaço feito de percursos e acumulações, confere ao filme Spiral Jetty uma intemporalidade expansiva. Quero com isto dizer que, nas paisagens cinemáticas de Smithson se recortam abstracções da matéria (detalhes do sal, da água), se passa do detalhe à expansão (a jetty filmada desde um helicóptero), e pela oscilação entre a grande e a pequena escala de planos, Smithson traduz a temporalidade e transformação da matéria numa forma cinemática. Para além do corte dos planos, Smithson ensaia movimentos de câmara que reproduzem a forma da obra e que poderiam ser interpretados como uma espécie de McLhuanismo – um embodiment da obra no dispositivo.[5] Produtivamente para mim, será perceber que o que Smithson vê como o cinemático do real, na sua aproximação a McLuhan, é que depois da Segunda Guerra Mundial, com o lançamento das bombas em Hiroshima e Nagasaki, já não é possível o naturalismo, que o real se transformou numa série de fixos, gasosos, que é necessário recompor – o reel time de McLuhan. A imagem cinematográfica pode dar-nos coordenadas de tempo e a progressão das coisas no espaço, e assim demonstrar como transformar um dado espaço num espaço qualquer, que é a potencialidade da spiral jetty, um espaço entrópico que se vai construindo, que nos leva para fora dele e para lugar nenhum.[6]
Podemos então concretizar a construção do espaço qualquer expandido de Smithson, conceito deleuziano que implica a construção de um espaço não determinado que destabiliza a posição do humano no mundo e as modalidades da sua percepção. Para Smithson a escala e o nosso posicionamento dependem da nossa atenção às «actualidades da percepção». Um estado cinemático do real leva Smithson a considerar que a matéria é uma vibração que quando percepcionada, se torna numa reacção fisiológica, num espasmo, num torpor. Os planos do sol, da sua incandescência, parecem ser a tradução cinematográfica desta ideia. Uma mancha de luz, que desorienta, que induz a um torpor e a um descontrolo. Esta percepção, ou consciência de um mundo que se tornou numa série de fixos, parece aproximar Smithson do postulado do mundo tornado imagem de Deleuze. Mas a percepção não tem nada de antropomórfico, de subjectivo: percepcionar a matéria é ver o que ela oculta, é ver os estratos, potencialidade. Refere Eric Alliez[7] que em Deleuze, a consciência já não é consciência de uma coisa, antes, há a afirmação de um plano de imanência onde o devir, o becoming transforma o cinema num meta-cinema, o universo torna-se ele mesmo cinema: «Deleuze explains that because cinema suppresses the anchoring of the subject in the horizon of the world, it allows us to ‘go back up towards the acentred state of things,’ toward a state of pure molecular vibrations, which now require transformation, and not translation.» A produção do espaço qualquer, – espace quelconque – assinala a produção de um espaço decomponível, cujos eixos variam e que assinalam não só a mobilidade da câmara, como a produção de uma percepção do tempo não teleológica, que antecede e projecta a dimensão histórica dos acontecimentos representados no ecrã. As variações de escala, o espaço decomponível, desde logo cinemático, a afectação dos sentidos devido às vibrações da matéria que o cinema pode traduzir, o corte que provoca indeterminação espacial, que rejeita coordenadas e que coloca em movimento o que está sob a superfície da matéria assim criando estratigrafias temporais, situam Smithson neste ponto de transição, na produção de um espaço-qualquer expandido. O lugar da entropia, figura central do pensamento do artista, mantém a matéria num estado de indeterminação, antigo e proléptico, que o cinema exprime como um potencial de transformação infinita da matéria.
Footnotes