Sair do interior restaurado do edifício Lutetia – um prédio dos anos 20 – para entrar na realidade exterior da praça do Patriarca – lugar onde tudo podia acontecer, onde uma panóplia de acções ocorria em simultâneo num verdadeiro experienciar de sensações. Num dos cantos da praça, alguém começa a pregar – atirando veementemente a bíblia ao chão e gritando para quem o ouvisse; num outro canto apregoa-se o que será melhor para o país; um outro grupo manifesta-se; há uma mulher que dança e canta sozinha; várias pessoas permanecem paradas a aproveitar o wi-fi gratuito; um adolescente corre – depois de ter roubado um telemóvel a um transeunte distraído; vários viciados em crack – como que caídos de uma árvore – a dormir num canto ou mesmo no meio da praça; alguns sem-abrigo a fazer a sua higiene diária; estudantes de teatro a representar; vários vendedores de rua a vender o inimaginável – desde baratas de borracha a produtos milagrosos para limpar o chão; talvez alguém passe a gritar ou simplesmente atravessa a praça no seu passo rotineiro silencioso de quem vai ou vem do trabalho. Uma experiência diária, onde todos os sentidos são postos à prova.
Cada dia, fosse qual fosse o sentido escolhido, esquerda ou direita, a circulação pelo centro, na contínua hora de ponta – das 7 da manhã às 7 da noite – era feita num permanente gingar. Virando para a direita, segue-se para noroeste pelo Viaduto do Chá em direcção à República, ou desce-se pela rua Líbero Badaró até à rua 25 Março, ou pela rua Dr. Falcão Filho – algo que era muito raro, atravessando uma ponte até à terminal do ónibus. Optando-se por virar à esquerda segue-se para nordeste pela rua São Bento, onde se passam por várias lojas, pastelarias e bancos até à rua 25 de Março, ou pela rua Quintanda – lugar onde alguém grita durante horas: óticaaaaa! ótica! ótica! óticaaaa! Seguindo para sudeste, atravessa-se a rua Direita em direcção à Sé e à Liberdade.
A caminhada começava com um confronto – a cada corpo encontrado na rua, numa fracção de segundos os olhares cruzavam-se, penetravam e trespassavam. Há quase uma colisão entre corpos, mas rapidamente é desviado o olhar para um outro contacto – um quase colidir de corpos similar a uma pista de carrinhos de choque.
Continuando o caminho traçado, a passo ritmado e rápido, visualizo o percurso e começa a dança. Desvio-me de um e de outro corpo que, no seu curso para o desconhecido, parece querer me tocar depois de já me ter trespassado visualmente, obrigando-me a desviar o olhar ou a virar o corpo para a esquerda ou para a direita. Movimento/acção semelhante ao da performance de Marina Abramovic e Ulay, Imponderabilia de 1977, cuja decisão de passar entre os seus dois corpos implicava uma escolha de género. Nestas ruas, a distância constante entre corpos, conceito apresentado por Edward T. Hall, A dimensão Oculta (Relógio d’Água Editores Lda., 1986, p.134), e dividido em quatro distâncias, íntima, pessoal, social e pública, era regularmente ultrapassada; a minha distância social e até pessoal era constantemente testada e quebrada. A escolha de quem queria ou não encarar, olhar, tocar, roçagar numa fracção de segundos, não me pertencia.
Ziguezaguear em linha recta
Espreite.
Desça as escadas,
encare a praça,
e avance.
Vire para a esquerda,
vire para a direita.
Desça a rua,
suba a rua.
Um sem-número de cores.
Passe por baixo de pontes,
por cima de viadutos.
Água! Água! Água!
Perca o Norte.
Colida com caixas, arcas de esferovite, pessoas, vendedores ambulantes, animais, objectos díspares, comida, corpos caídos, lixo...
e gingue, gingue para lados opostos.
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Créditos: Lara Morais, wanderings, 2015. Fotografia: Lara Morais.