Na continuidade das últimas quatro edições, a documenta 14 propôs deslocalizar e descentralizar o evento de Kassel para outras paragens, tornando o evento mais transnacional. A prática de abertura e de extensão da documenta a outros locais e realidades foi seguida desde 1997, com Catherine David, na sua iniciativa 100 days – 100 guests na Documenta X, com Okwui Enwezor na documenta 11 e a criação de «plataformas» em diferentes locais do mundo, com Carolyn Christov-Bakargiev na documenta 13, em que se desenvolveram actividades em cidades satélite, como Cabul.
Desta vez, foi a equipa curatorial de Adam Szewczyk que decidiu fazer um manifesto político, estabelecendo um novo formato de exposição, duplo e simultâneo, um modelo dividido no espaço com a organização de uma manifestação repartida entre Kassel e Atenas. Sem escapar a algumas críticas da parte alemã que teme perder o controle sobre a organização do evento e de alguns sectores de Atenas, que consideram abusivo fazer-se um evento espectacular na cidade neste período crítico do país. No texto de abertura da publicação The documenta 14 Reader[1]o curador refere as dificuldades que esta proposta suscitou no período de produção do evento e de como foi complicado manter a intenção de dar iguais condições logísticas, financeiras ao evento nas duas cidades. Ou seja, numa atitude que não é muito habitual, foram explicitamente referidos os entraves às mudanças efectivas nas estruturas institucionais, e o esforço suplementar exigido no processo para levar por diante o desejo de contrariar a supremacia da sede e propor concepções igualitárias e não hierárquicas entre as cidades, inclusivamente fazendo a abertura inaugural na Grécia e convidando os artistas a trabalhar nos dois locais.
Esta seria a forma de recusar as relações instituídas entre Norte e Sul da Europa, centro e periferia, uma ideia que Paul B. Preciado desconstruiu, relembrando que o Sul tal como o Norte não existem, num texto muito assertivo, «Upside Down», publicado no segundo número da série Public Paper, jornal distribuído gratuitamente ao longo do evento que serve de programa geral das actividades que decorrem em Atenas e Kassel. Nesse texto, Preciado reafirma que essas são ficções políticas construídas em relações de poder coloniais, na base de uma geografia e cronologia colonial moderna em que o Norte simboliza o progresso, o futuro e a riqueza e o Sul o passado, o primitivo e a pobreza. Cada espaço tem um norte e um sul e Atenas não é o Sul, nem Kassel o Norte.
A documenta 14 pretende assim apostar não nas diferenças mas no que é comum, enfraquecendo uma ordem de pensamento assente em relações de ordem binária e dicotómica, que no caso de Paul B. Preciado têm analogia com a sua vida pessoal, na mudança de género, do feminino para o masculino, e correspondente alteração de nome, trajecto que englobou um processo biológico e político-adminstrativo que testemunha no texto do The documenta 14 Reader, relatando as dificuldades do Estado em assumir a condição «trans»[2].
No mesmo sentido destas afirmações, também o título desta documenta 14, «Aprender com Atenas», foi acompanhado de uma nota explicativa, em que longe de ser entendida pela equipa curatorial como um convite à prática da pedagogia clássica, mas sim progressista, no sentido de expôr-se ao desconhecido, questionar os preconceitos, as ideias e conhecimentos adquiridos, num desejo de desaprender e reinventar o entendimento do mundo.
A experimentação de formatos, a relativização e a extensão da unidade espacio-temporal do programa, com repetição em duas cidades europeias, aplica-se igualmente às exposições, com a proposta de alguns artistas trabalharem em várias delas, pontuando diferentes momentos e estabelecendo um sentido de continuidade e porosidade geral. Maria Hassabi, Irena Haiduk, Joar Nango, Dan Peterman, são alguns dos artistas representados em vários momentos expositivos. Na Neue Neue Galerie (Neue Hauptpost), local usado pela primeira vez nesta documenta 14, um antigo entreposto central dos correios da cidade desactivado por forçada privatização e digitalização dos processos de comunicação, apresentam-se peças da cipriota Maria Hassabi, artista e coreógrafa, residente em Nova Iorque, que apresenta vários solos e uma instalação ao vivo em diferentes espaços da exposição – dentro e fora do espaço da galeria –, estendendo a exibição a espaços intersticiais como as escadas do edifício.
Na Neue Neue Galerie existe também um espaço de exposição de sapatos Borosana, um modelo desenvolvido na década de sessenta em Vukovar, na ex-Jugoslávia, concebido para dar conforto à jornada de trabalho das mulheres do sector público – cuja produção foi abandonada com a guerra em 1991 –, e cuja produção Irena Haiduk decidiu reiniciar em 2011, intitulando o projecto de Nine-Hour Delay e vendendo cada par a um preço variável adaptado ao nível de rendimentos das clientes, mediante um contrato e acordo de usarem os sapatos unicamente em períodos de trabalho.
No edíficio, mas também em diferentes zonas públicas, Irena Haiduk apresenta a performance Spinal Discipline (2017), uma performance em que 13 mulheres, que segundo a artista pertencem à Army of Beautiful Women, caminham elegantemente com um exemplar de um livro de Marcel Proust sobre a cabeça.
Também a instalação Ingot Project de Dan Peterman é apresentada numa versão monumental na Neue Neue Galerie e depois pontua outros espaços como o Kulturbahnhof, via ferroviária desactivada da estação central ferroviária da cidade e os pavilhões de vidro Hansa-Haus, antigas galerias de comércio local na zona norte da cidade, abandonadas com o crescimento das cadeias de lojas na parte sul. Neste projecto, sobre a reutilização, modos de produção e trajectórias de circulação de materiais, Dan Peterman produziu para a Grécia lingotes de cobre com a forma dos artefactos da Idade do Bronze existentes no Mediterrâneo no século 12 A.C. e para a Alemanha, lingotes de ferro realizados segundo o modelo de larga escala das indústrias pesadas de Kassel.
Joar Nango, artista norueguês do grupo étnico nativo da Lapónia também apresenta projectos em Atenas e Kassel. Nessa cidade mostra trabalhos na Neue Neue Galerie e na Hansa-Haus, onde ocupa um espaço marcado pela recuperação dos valores da improvisação, pela vida nómada e pelas potencialidades do trabalho colaborativo com referências a modos de produção artesanais e indígenas. O seu principal projecto é European Everything, uma viagem efectuada em furgão entre Tromsø na Noruega e Atenas, com passagem por zonas periféricas, que o artista entende serem potenciais espaços abertos à experimentação e contactos com grupos e comunidades marginalizadas europeias, como as culturas da Lapónia e cigana, que considera serem testemunhos da força das culturas indígenas e símbolos da resistência, de adaptação e flexibilidade no espaço europeu.
Como não poderia deixar de ser, Atenas e a cultura grega estão bem presentes em Kassel e na Alemanha. O Museu Fridericianum, sede tradicional da documenta, o primeiro museu público na região continental europeia, com o seu traçado neo-clássico, o que não é alheio ao entusiasmo pela arte grega, muito cultivado por Johann Joachim Wincklemann que, no século XVIII, sem se ter deslocado à Grécia, escreveu Geschichte ser Kunst des Alterhums [História da Arte Antiga], importante para a arqueologia e para a história da arte, impondo o ideal da Grécia clássica. Neste momento, o Museu Fridericianum recebe a colecção permanente do EMST – Museu Nacional de Arte Contemporânea de Arte de Atenas, dedicada à arte grega e internacional contemporâneas. A selecção curatorial permite conhecer muitos nomes gregos históricos sem grande visibilidade no plano internacional e no conjunto são fortes as referências e os trabalhos sobre crises políticas, migratórias, da democracia, da globalização e dos nacionalismos. Por exemplo, na fachada do edifício encontra-se uma intervenção de Banu Cennetoğlu, que reformulou o nome do museu no frontispício do edifício com a inscrição Being Safe is Scary (2017).
O peso simbólico da primeira democracia e da acrópole estão patentes em Kassel, sobretudo na peça principal que ocupa a Friedrichsplatz, no lado oposto ao Museu Fridericianum, onde Marta Minujín instalou Parthenon of Books, uma réplica da acrópole cujas colunas dóricas surgem repletas de livros censurados e proibidos historicamente e actualmente em algumas partes do mundo, que foram ou estão a ser doados à organização, local onde na década de trinta do século passado ocorreu uma acção de queima de livros pelo regime nazi. Tal como aconteceu com a versão original da obra, apresentada em 1983 em Buenos Aires, também em Kassel esta peça será igualmente desmontada para que os livros possam ter nova circulação. Na mesma praça, em frente à documenta Halle, a peça do curdo-iraquiano Hiwa K, When We Were Exhaling Images, constituída por uma série de tubos de aço que lembram abrigos, repletos de objectos pessoais, livros, equipamentos e mobiliário básico, réplicas das posses de migrantes e refugiados.
São três os espaços centrais de exposição, o Museu Fridericianum, o Neue Neue Galerie e a Neue Galerie. O Neue Neue Galerie, situa-se na zona norte da cidade onde vive a maioria das comunidades imigrantes da cidade e é lá que encontramos a maior parte dos novos trabalhos produzidos para esta edição da documenta. Na Neue Galerie estão sobretudo obras históricas, muitas delas com abordagens sobre as relações entre a Alemanha e a Grécia, o nacionalismo do século XIX, a história da arte e a cultura dos museus, o colonialismo e a escravatura, o nazismo e a questão judaica, sobre a qual a artista Maria Eichhorn criou o projecto interdisciplinar independente Rose Valland Institute (2017). Baptizado com o nome da historiadora de arte que registou em segredo o saque nazi dos bens de judeus durante a ocupação alemã de Paris, este projecto concebido para a documenta 14 é dedicado a investigar questões relacionadas com o confisco nazi de obras de arte, imóveis, empresas, objectos e bibliotecas de cidadãos judeus.
Maria Eichhorn, que com este projecto dá assim continuidade a anteriores trabalhos em que o tema da restituição de propriedade da população judaica na Europa já era tratado, como Restitutionspolitik/Politics of Restitution (2003) e In den Zelten 8 / 9 / 9a / 10 (2015), expõe agora na Neue Galerie obras literárias que foram propriedade de famílias de judeus alemães e que hoje estão na Biblioteca Central de Berlim e também documentos e fotografias do espólio do recém-criado Instituto Rose Valland. No final da exposição há também uma biblioteca e uma zona de leitura onde se disponibiliza bibliografia específica sobre a restituição da verdade, da memória e da propriedade de famílias judias.
Esta edição da documenta 14 é marcadamente política, pela intenção curatorial de descentralizar e expandir o evento de Norte para Sul, e pelo conteúdo dos trabalhos apresentados, que abordam questões relacionadas com a actualidade dos refugiados e das migrações, comunidades minoritárias e marginalizadas, assim como temas cruciais da história da Alemanha, da Grécia e de outros países e sobretudo da realidade europeia.
Footnotes
^ Adam Szymczyk, «14: Iterability and Otherness – Learning and Working from Athens» in Quinn Latimer & Adam Szymczyk (eds.), The documenta 14 Reader. Munich, London, New York: Prestel Verlag, pp. 17-42.
^ Paul B. Preciado, «My Body Doesn’t Exist» in Quinn Latimer & Adam Szymczyk (eds.), The documenta 14 Reader. Munich, London, New York: Prestel Verlag, pp. 117-161.