É natural que tenhamos começado pelo grito, ou pelo grunhido, e depois evoluído para uma espécie de canto – o parente significativo do grito. Aquele grito primordial de susto, de dor, força, ataque, vitória, descoberta, satisfação, alegria, ideia; terá sido assim o fim da nossa mudez congénita. No princípio não era o verbo. «Acontece como quando caminhamos no bosque e, de repente, inaudita, surpreende-nos a variedade das vozes animais. Silvos, piados, trilos, toques como de madeira ou metal trincado, chilros, ruflos, bisbilhos: cada animal tem o seu som, que brota imediatamente dele. Enfim, a dupla nota do cuco goza do nosso silêncio e revela-nos, insustentável, o nosso ser sem voz, únicos no coro infinito das vozes animais.» (Agamben) A voz vazia dos animais, escreveu Hegel. Os verdadeiros primitivos são os homens antes dos quais a terra era pertença dos animais. (Leroi-Gourhan)
Na verdade, o grito pode ser entendido como a linguagem natural possível dos humanos (ou mesmo o choro do infante saído da vagina materna), embora tenha sido para sempre interrompida pela linguagem primeiro falada e depois escrita. Por exemplo, as primeiras palavras – um, umbigo, umbilical, umbral, úmero, húmido, one, won, wonder, wonderful, wonderland, wondering. Aquele grito primordial – o grito é voz sem fala – assinala o diferente, o inesperado, o que estilhaça uma certa normalidade, a rotina, o mesmo. O grito provém, então, do novo – do acontecimento e do espanto –, mas não só. A voz responde ao seio que falta, escreveu Kristeva; a voz solta-se da boca incompleta, da garganta rosa aberta do infante (do infalante); entre o sono e o leite, o grito a fazer sobreviver. A fala vem da fome.
No grito insignificante ficaram presas as feras bárbaras, e no canto, os pássaros; também nós poderíamos ter ficado por aí. Os pássaros são seres bífidos, como os anfíbios. Todos os seres vivos não marinhos são pousadores; mesmo os que evoluem pelo aéreo acabam sempre por pousar. Na Terra, só há o marinho e o terrestre – o aéreo é circunstancial, temporário, contingente. Ainda assim, o elemento do pássaro é o ar, não apenas devido ao voo, mas igualmente ao canto, que, igualmente, apenas acontece no ar. Mais ninguém canta, apenas nós, humanos, os acompanhamos. Palavras com ave no meio – grave, atravessar, avesso, caveira, caverna, cadáver, favela, gaveta, chave, Primavera, aventura, navegador, suave, wave, heaven, raven. Sempre que se canta, é-se ligado tanto à atmosfera dos pássaros como às cavernas dos primitivos. E ao organizar o grito aconteceu o canto – de alegria, pesar, magia.
Gradualmente, o sopro (ar) transforma-se em som (grito), o som em palavra (fala), a palavra em forma (escrita), a forma em sentido (texto); ar > fala > texto. A linguagem – a fala – parasita a respiração, escreveu Quignard; aí, uma vez mais, une-se intimamente à sobrevivência. A linguagem – a fala – é, pois, pulmonar – lunguage. O grito e o canto são o mais próximo do gesto que pode a fala; por isso, grito e canto são o que esta tem de mais visível; boca – pul – mão. A mão liga-se ao tronco (pulmão) ainda antes de se ligar à cabeça (boca). A fala, como o ar e o vento, é invisível; de visível só lhe reconhecemos as putativas consequências.
A palavra está em vez de. Esta é a definição de signo, está em vez de; está, portanto, em vez de algo que não está, que, de algum modo, é contingentemente invisível.
Todo o texto é, pois, ausência atrás de ausência, sucessivamente, da esquerda para a direita – ou vice-versa; (numa frase, as palavras empurram os olhos leitores de um lado para o outro, na esperança de sentido; a leitura acontece pela esperança e pela crença. A palavra é um ex-voto.) Enfim, eu próprio, claro, (já) não estou aqui.
How to be – Autobiografia.
Cada coisa bifurca-se em significante e significado; podemos acrescentar-lhe a imagem, tal como Platão fez na Carta VII – «A primeira coisa é o nome, a segunda é o discurso que define [logos], a terceira é a imagem [eidolon], …» Temos então a própria coisa [to pragma auto], a palavra, a definição; Kosuth andou por aqui, claro. Acontece que o significado trespassa o significante e o torna, também ele, de um certo modo, invisível. O significado obstrui a palavra. Quer dizer, quando lemos a palavra CARRO (e acabámos de o fazer), lemos aquele veículo com quatro rodas, e não a palavra de cinco letras ou, muito menos, o arco do ‘C’, o ‘A’ piramidal, a repetição do ‘R’ ou o buraco do ‘O’. Quando lemos ligamo-nos ao que a leitura quer dizer e não à superfície formal da escrita – atentamos ao tom e não à tona. O texto é um pretexto e não um fim. Só uma linguagem abstracta revela a palavra, tal como apenas uma pintura abstracta revela a tinta que de outro modo se camufla atrás da imagem pintada. A palavra ilegível é a única opaca e por isso mesmo será a única espectacularmente visível, ou seja, obscena.
Çiuhdg vliaehl – esta é a única parte verdadeiramente visível deste texto. A palavra ilegível é a palavra infalável, silenciosa, ou seja, impronunciável; está, portanto, ainda perto do grito, do grunhido, do rugido, num certo sentido, da voz sem fala de que fala Hegel. Ou palavras ainda sem significado, palavras lacónicas, taciturnas – ganansiedade, cemistério, vulnerabilidoso, simulucro, sonambulância, proustituta, heraclitóris, paristóteles, ontemporâneo, contemporário, famoseu, entrégua, esfreguesias. Todas as palavras já foram neologismos. Foda-se, por exemplo. O palavrão, em geral, não tem em si um significado; o palavrão é apenas forma e função; foda-se não diz, apenas funciona; não parece ter nem sujeito nem objecto. Tal como filho-da-puta, que pretende insultar não a mãe mas o filho, e não parece crível que o insulto funcione melhor por intermédio de uma invocação da progenitora.
Ou percebemos ou vemos, e só percebemos se o texto se anular e deixar chegar até nós o significado. Ou texto ou imagem. Palavra silhueta – a luz vem por trás dela, por isso o texto chega-nos a preto; o texto está sempre em contra-luz.
Uma imagem vale por mil palavras, mas uma só palavra pode neutralizar uma imagem, pode ser totalmente coerciva – a palavra ortopédica. Les mots peuvent faire dire tout ce qu'on veut aux images; qualquer coisa como «As palavras podem fazer com que as imagens digam o que quisermos.» (Chris Marker) A legenda diz o que se vê, o que se deve ver; a palavra diz o que a imagem é. A palavra (texto, linguagem, fala) parece mais forte que a imagem; mais o ouvido que o olho, dir-se-ia.
Tudo o que está no meio é linguagem – a linguagem está sempre no meio, como as pontes e os obstáculos. Nesta espécie de procura por uma arché fantasiosa, usa-se linguagem como termo-amálgama, que compreende fala, escrita, palavra, língua, texto, linguagem ela mesma, etc, mas, acima de tudo, língua escrita. Mas, na verdade, talvez tudo tenha começado pela matemática, pelos números, obrigatórios para o funcionamento das trocas, do comércio; talvez, na verdade, enfim, tudo tenha começado com o dinheiro. Everything begins with an egg: existence, exhibition, execution, exile. Exit.