Num local particular no centro de Europa, visto de uma certa perspectiva, uma pequena esfinge de pedra preta, olhando para sudeste, bloqueia parcialmente a vista sobre o arranha-céus do Banco Central Europeu. Ela não o protege, como se poderia pensar, simplesmente afirma a sua presença ali.
Numa noite em Dezembro, com o barulho de uma festa com uma multidão mal-humorada como pano de fundo, um homem caminha até à esfinge, pára junto dela para olhar o céu nocturno e a forma política imponente do banco, quando subitamente o arranha-céus se torna escuro como breu. Uma falha de corrente causou um apagão no quarteirão. Um comboio passa na ponte em frente ao arranha-céus do BCE, talvez num circuito diferente, com mais volume do que o normal. A camada de amplificação eléctrica do som da festa é retirada, a música subitamente desaparece e as vozes assustadas dos festivaleiros tornam-se audíveis. O homem ao lado da esfinge recorda-se da sua presença numa marcha de protesto anti-capitalista no Verão passado. Bem dispostos, caminhavam pelo parque sinuoso através do centro da cidade, alguns deles tinham tocado música em sistemas de som portáteis ou em camiões estacionados ao longo do percurso, outros declamavam palavras de ordem humanistas e socialistas. Tinha sido uma atmosfera quase festiva em frente da Eurotower, o antigo edifício do BCE.
Neste momento, ele testemunha tensos segundos de escuridão, caos, e finalmente, Dada, englobando algo hipoteticamente maior que as abordagens artísticas, antes que o gerador de emergência do arranha-céus dispare, acendendo as luzes, piscando um branco frio dinâmico desde a base até ao último andar, surpreendentemente privilegiando a função do banco. Esses segundos não revelam nada sobre a causa real e o obscuro potencial do apagão do edifício, nem sobre o estado geral dos assuntos na Comunidade Europeia, enquanto que alguns dos convivas saíram apressadamente para esperar um terremoto, uma explosão, o apagão alastrando-se ainda mais pela cidade, ou por imaginarem já que as notícias da manhã anunciariam que o BCE tinha sido sabotado, pirateado durante o apagão, desactivado, ou até que uma guerra seria declarada em breve. Ambulâncias e carros de bombeiros chegam do centro e do outro lado do rio, mas não param junto do arranha-céus. Passam velozmente em direcção a algum outro lugar momentaneamente fora de vista. A posição silenciosa da esfinge de pedra permanece como a única certeza.
Em frente da Eurotower, algumas noites geladas mais tarde, num pedaço de relva num cruzamento movimentado, uma mulher magra desfalece ao lado de um banco de parque de pedra negra. Vários objectos estão espalhados à sua volta, uma mala de mão aberta, embalagens de espuma de barbear e laca, um pacote de cigarros cheio acabado de abrir, uma mala (teria vindo da estação de comboios?) e duas garrafas vazias de vodka. Ela está ao lado do banco do parque, no que parece uma posição fetal. Ela vai congelar até a morte muito em breve. Pedestres: mongóis, italianos, alemães, Volkswagens e BMW apressados. A indiferença reina nessas encruzilhadas, que marcam a entrada numa área conhecida pelo seu Bairro da Luz Vermelha, pelos seus traficantes de droga, pelo crescente número de sem-abrigo, pelo menos desde os últimos verões, famílias inteiras sem casa com carrinhos de bebé, carne grelhada em churrascos improvisados sobre o pavimento progressivamente manchado de gordura. Ninguém pára, ninguém realmente quer saber, ninguém quer assumir a responsabilidade de ter que lidar com quaisquer interrogatórios posteriores.
A mulher está deitada na relva, a sua posição assemelha-se à escultura de Cattelan em que João Paulo II é atingido por um meteorito. Quando finalmente foi abordada, ela reage, gemendo, contorcendo-se ligeiramente, incapaz de pronunciar quaisquer palavras. Usa anéis baratos na maioria de seus dedos, com pequenos cristais de vidro cintilantes, de desenhos giros e excêntricos de supermercado, moldados em metal brilhante, a promessa consumista de falso esplendor, de riqueza de conto de fadas. Mas ela está no chão, junto de restos de urina de rato, fragmentos de drogas de rua misturadas com inseticidas que poderiam penetrar na epiderme das suas mãos nuas, lóbulos ou bochechas, que tocam a relva congelada com um débil resto de calor corporal. Alguém consegue levantá-la. Encurvada, contra os joelhos. Gesticula com os braços, depois estremece e começa a tossir, o que soa como se cuspisse tudo o que tem dentro dela, os órgãos, o pouco ar que tem nos pulmões, uma percentagem de vodka alterado, o seu bilhete de regresso, as suas esperanças e desejos, o que se resume a pequenas gotas de sangue negro. Intoxicada, semi-inconsciente, ela balança de um lado para o outro, arranhando as mãos que tentam segurá-la, com os seus anéis afiados, uma convergência de doença e esplendor.