Há casais de artistas, unidos pelo destino de um encontro, cujo caminho de vida e de obra é vivido como uma evidência e um eco que ressoa e que sabem que a pintura é o seu acto de amor. Vieira da Silva (1908-1992), apenas chegada a Paris do seu Portugal natal em Janeiro de 1928, encontra o pintor húngaro Arpad Szenes (1897-1985), no dia seguinte à sua inscrição na Académie de la Grande Chaumière. Este encontro provoca em Szenes um verdadeiro coup de foudre pelo olhar de Vieira, que considera diferente de todos os outros.
É o primeiro a reparar no seu desenho peculiar, talvez até no seu intuito, e o primeiro a encorajá-la a dedicar-se-lhe. Ambos se reconhecem seguindo o caminho de Cézanne e da Escola de Paris mais do que na do Bauhaus. O encontro com Jeanne Bucher, a que dão afectuosamente o nome de Notre-Dame de Paris, é determinante já que esta expõe os dois artistas, a partir dos anos 30, na sua galeria parisiense, onde a promoção da sua obra ainda hoje prossegue.
A aprendizagem da vida a dois traduz-se, para Arpad Szenes e Vieira da Silva, por um grande número de retratos respectivos, onde cada um no seu estilo se procura e procura o outro. A partir de 1930, a Villa des Camélias unirá no seio de um mesmo atelier os seus destinos de pintores e de esposos. Pintando de muito perto o seu espaço infinitamente desdobrado, com ressonâncias e projecções, Vieira da Silva tece a sua teia, feita de incertezas e de dúvidas, fazendo por não perder o fio do seu instinto, único guia da sua exploração secreta. As figuras de mapas, de tabuleiros de xadrez, de portas, de pontes, de bibliotecas, servem de pretextos, de caminhos de aproximação a esta viagem rumo ao invisível, esta demanda do Graal pictórico rumo à transcendência de uma saída luminosa.
Estando o exterior e o interior profundamente unidos em Vieira, as suas múltiplas camisas e saias com quadrados ou losangos parecem projectar por completo a artista nas malhas da sua tela, de que faz incontestavelmente parte. É o que Arpad Szenes não deixará de imortalizar nas suas pinturas, ao representar a sua esposa a pintar as suas telas, mergulhando-nos desta forma no abismo das suas reflexões e a profundidade das suas pesquisas através da visão do amor infinito que tem pela sua mulher. Se a pintura de Vieira da Silva é um labirinto de incertezas guiado pelo instinto de uma evidência que ela desdobra até ao infinito, a pintura de Arpad Szenes é de uma natureza totalmente diferente. Tem o desprendimento da extensão, o dedo de um sabedoria infinita com uma humanidade generosa e natural. As suas paisagens são margens, medições alusivas, rêveries deitadas, saudades de horizontes, como as memórias de uma contemplação cujas nuances subtis de cinzentos e brancos seriam multiplicadas em pinceladas infinitas. A pintura de Szenes é tão vasta, extensa e horizontal quanto a de Vieira é apertada, vertical e profunda.
Esta verticalidade e horizontalidade são exactamente o que mais nos impressiona quando penetramos no espaço dos seus dois ateliers da Orangerie em Yèvre-le-Châtel, no Loiret. Os dois ateliers têm dimensões e volumes absolutamente iguais; produzem, no entanto, uma impressão totalmente diferente. No de Arpad, penetramos num espaço animado de uma imensa clarabóia horizontal que banha todo o espaço do atelier de uma luz de Zénite, doce e envolvente. No de Vieira, entramos num espaço em que altas janelas, verticalmente colocadas ao lado umas das outras em toda uma parede, pontuadas por longos cortinados, permitem filtrar e criar entradas de luz, aqui e ali. Os dois ateliers ligados por terraços, construídos pelo arquitecto Georges Johannet, que me explicou a sua génese, tinham cada um a sua própria luz e deviam no entanto unir os artistas musicalmente – Haendel, Bartok, Haydn, Beethoven, Bartok, Varèse, Boulez... – enquanto pintavam: Arpad Szenes era o mestre da música.
Vieira da Silva e Arpad Szenes reencontram-se desta forma, no seu destino de pintores e de esposos, numa busca pictórica e poética, ao encontro das paisagens da sua alma e do seu coração; Vieira da Silva num mundo de cidades e de civilizações que se tornam metáforas do espaço-tempo e do espírito; Arpad Szenes nos sulcos do vento, do voo dos pássaros e da luz das rochas de uma contemplação, ao mesmo tempo sensível e distante, quase oriental. Uma busca artística que indica o caminho respectivo destes dois artistas em direcção à luz, em que a consciência de um projecto de vida e de arte laboriosamente e pessoalmente levado a cabo por cada um, até que o lento caminho artístico, de parte e de outra, leve ambos a uma serenidade luminosa tanto na sua arte como no seu próprio ser.