Últimas notas sobre a possibilidade de uma arte política
16.
A obra de arte política pretende mudar o mundo, ou parte do mundo, uma situação, um estado de coisas. Na verdade, não pretende apenas mudar – pretende mudar o mundo para melhor, torná-lo mais saudável, mais justo, mais igualitário, mais humano. A obra de arte política pretende melhorar o mundo. Ao referir-se a esta questão, Boris Groys fala de design, pois «o design quer mudar a realidade, o status quo – quer melhorar a realidade, torná-la mais atractiva, torná-la mais funcional.» (e-flux journal, 06/2014) Esta intenção permite pelo menos duas constatações: uma relativa à moral (i) e outra medicinal (ii).
17.
(i) A arte que denuncia, que proclama, que avisa, crê-se do lado correcto – justo – das coisas, do mundo, da história; em todo o seu discurso se percebe, implícita ou explicitamente, a referência a um «eles» errados e injustos em contraposição a um «nós» correctos e sensatos.
18.
(ii) A arte que tenta melhorar o mundo poderá ser entendida como remédio para um mundo permanentemente doente – tratar o mundo através do espectador –, ou seja, entender o espaço da arte como uma farmácia da plateia. Em A Farmácia de Platão, Derrida escreve que, «é preciso, com efeito, saber que Platão suspeita do phármakon em geral, mesmo quando se trata de drogas utilizadas com fins exclusivamente terapêuticos, mesmo se elas são manejadas com boas intenções, e mesmo se elas são eficazes como tais. Não há remédio inofensivo. O phármakon não pode jamais ser simplesmente inofensivo (...) porque a essência ou a virtude benéfica do phármakon não o impede de ser doloroso.»
O remédio tenta conduzir a doença à saúde, levar o corpo dócil do paciente – o profissional da espera, como lhe chama Peter Handke – de uma à outra; tenta estabelecer uma continuidade, uma linha recta, tenta fechar – suturar – a ferida, essa abertura, furo, buraco, imprevisto e problemático na pele de um corpo.
19.
A acompanhar qualquer remédio, devido precisamente àquela sua natureza dúbia de remédio e veneno, encontramos sempre a bula; a bula é uma instrução para a acção; poder-se-ia dizer que se trata de um texto coreográfico, uma coreografia, um argumento, didascália, escantilhão, um protocolo, isto é, «um conjunto de regras explícitas rigorosamente pensadas para minimizar o erro» (José Luis Pardo, El País, 27/10/2014), para prevenir o desvio, como um regulamento – regular para manter regular –, ou um ditado, que coreografa os movimentos da mão infantil. A bula apresenta-se sempre como uma predeterminação dos movimentos – das acções – do ser (doente); predetermina o errado e o correcto, como fazer e como não fazer, tudo isto em função de um fim específico, uma teleologia, ao contrário do que acontece, por exemplo, com as leis numa democracia; como escreveu Hannah Arendt em A Promessa da Política, «a grandeza das leis de uma sociedade livre está em que nunca nos dizem o que deveríamos fazer, mas apenas o que devemos não fazer» – em vez de regras, leis.
Uma arte política deveria ser precisamente o contrário deste fechamento, desta clausura do remédio e da sua bula, de uma consequência que se quer certa, indiscutível e inevitável. Na verdade, poder-se-ia mesmo dizer que a política é o exacto contrário da inevitabilidade; ou, a política serve para desarmar o inevitável. Quando se fala em inevitabilidade quer-se, na verdade, negar a política, a abertura, a possibilidade.
20.
A política é o reino dos possíveis, e estes só o são se forem simultâneos; isto é, os possíveis só o são se estiverem disponíveis ao mesmo tempo. A política é então o reino da simultaneidade, da simultaneidade dos possíveis. Uma arte política não deverá tentar revelar, descobrir, destapar a suposta verdade que evolui escondida por detrás da pele espectacular das coisas, mas apenas talvez disponibilizar o que acontece – ou pode acontecer – ao mesmo tempo, lado a lado; propor alternativas, possíveis e impossíveis, outros usos, outras interpretações do que é comum, do que é conhecido, ou do que ainda não existe; coisas ao lado das coisas – talvez seja este o significado daquele falhar melhor de Beckett, isto é, acertar ao lado.
Abrir e não afunilar, alternativas e não inevitabilidades, duração e não instante, propor e não dirigir, plano de possibilidades e não linha de direcção, desapontar e não apontar. (Apontar implica direcção e ordem, impõe uma execução e não uma simples acção; aponta-se com o dedo indicador na horizontal. Desapontar é desordenar a ordem do indicador; desaponta-se com o dedo médio em riste).
21.
Mudar o mundo alargando-o através da criação de simultaneidades, e não afunilando-o pela ordem única – esta é a possibilidade política da arte.