É possível pensar a poesia de várias formas; eis três delas:
a) A poesia como bela forma; a beleza da forma, frase, verso, do objecto, da rima, do som; formas belas de dizer uma coisa – a flor, mulher, cadáver, lixo –, ou de dizer coisas belas. Trata-se portanto da poesia como beleza;
b) A poesia como exactidão; a exactidão como uma forma de resistência contra a infinitude da linguagem – dizer os nomes certos das coisas certas, dar a certas coisas os nomes certos. Trata-se portanto da poesia como exactidão;
c) A poesia como interrupção; dizer o que nunca se disse, de maneira nunca antes dita; poesia que interrompe o senso comum, a maneira comum de se dizer, a utilização habitual, a rima entre o nome e a coisa; poesia que não permite à linguagem a transparência, isto é, que não se veja claramente aquilo de que ela fala. Poesia que hifeniza – irmana – coisas estrangeiras, como numa colagem, que nivela tudo à superfície e assim constrói um todo heterodoxo, estranho, incerto. Poesia que ao interromper aponta para algo nunca antes apontado; poesia que desaponta as expectativas; ver o novo no mesmo, perceber o estranho no evidente. Trata-se portanto da poesia como política.
A poesia – tal como a arte, aliás – não será política por se referir a coisas políticas, ou por adoptar uma estratégia de denúncia, de acção ou activismo, mas por no seu interior desactivar determinados funcionamentos cristalizados, por escancarar a linguagem e, consequentemente, o mundo. Só assim a poesia – tal como a arte, aliás – poderá ser política.
2.
A poesia tem hoje um péssimo nome; poético é aquilo que apresenta uma bela forma ou algo que não apresenta um significado explícito, claro; ou, de outra forma, poético é aquilo que ocupa um espaço difuso – o intervalo entre o que é belo e o que é misterioso, ou entre a beleza e a ignorância. É este o contexto no qual a poesia ou o poético são muitas vezes invocados. Deste modo, a poesia é entendida como um anexo multifuncional, multifacetado, de todas as outras categorias das coisas (artísticas ou não). Trata-se portanto de uma formulação in extremis, que quer dizer tudo ou nada, e por isso mesmo, vazia de sentido, e por isso mesmo, que não quer dizer nada.
3.
De modo semelhante, outra formulação cada vez mais recorrente nos discursos artísticos, e que apresenta também ela um significado informe e pastoso, é a arte política. São hoje raros os artistas – raras as obras, raros os textos, raras as exposições – que não tentam resgatar para si uma certa intenção, funcionamento ou consequência políticos, numa tentativa de escapar à inocuidade das acções, numa tentativa de escapar a uma arte autista, desligada do mundo real, inconsequente, que não serve para nada. O problema da arte política levanta a questão fundamental – para que pode servir a arte fora (da sua esfera restrita)? Ou afinal como pode a arte ser política? E o que quer dizer política na esfera artística? Um pressuposto torna-se desde logo obrigatório – a possibilidade política da arte é diferente de a arte poder fazer política; quando a arte tenta fazer política, as suas manifestações adquirem geralmente um carácter óbvio, ingénuo ou mesmo adolescente, prescritivo ou paternalista, em franca contradição com a intenção de liberdade e libertação – de emancipação e igualdade – que as justificaria a priori.
4.
Esta residência online vai estabelecer-se entre estes dois pólos críticos (a poesia e a arte política), pólos esses, que de um certo ponto de vista, serão praticamente coincidentes, praticamente sinónimos. Esta residência online vai precisamente tentar equilibrar-se na linha curta mas instável que os liga – uma residência em linha, funâmbula. A residência terá três facetas distintas mas concorrentes e por vezes simultâneas; concorrência quer dizer que se parte de pontos diferentes mas em que o objectivo é o mesmo; concorrentes quer dizer que se encontram no final, que os caminhos se afunilam finalmente num ponto único de pressão:
a) Textos críticos, de periodicidade incerta, sobre arte, tendo em conta o nosso entendimento da política e poesia;
b) Cinco posts por semana, num total de quarenta; trata-se de uma selecção feita a partir do projecto online diário sobre linguagem e quotidiano Inappropriate Poetry. Cada semana será subordinada a um tema: semana 1 (Constatações I), semana 2 (Linguagem), semana 3 (Corpo I), semana 4 (Acções), semana 5 (Corpo II), semana 6 (Quotidiano), semana 7 (Constatações II), semana 8 (Corpo III);
c) Entre cinco e oito vídeos; estes vídeos fazem parte integrante do projecto Inappropriate Poetry; possuem a mesma lógica interna, isto é, trata-se de um trabalho sobre o quotidiano, mais especificamente, na sua maioria, sobre a cidade.
5.
O ponto para onde concorrem estas três facetas é o conceito de interrupção. Entendida como interrupção, a poesia pode fornecer um modelo possível para o funcionamento de uma arte política. Da política poder-se-á dizer que apresenta a seguinte mecânica: tudo o que é político interrompe; nem tudo o que interrompe é político.