O sol punha-se no horizonte, o calor era sufocante, a vista tirava-nos a respiração. A camada de cera suave aplicada à placa de cobre, anteriormente gravada pela pressão de objectos do quotidiano na sua superfície por meio de uma prensa, estava corroída pelo contacto do ácido, cuja acção era mais forte por causa do imenso calor e da hora do dia. O processo tradicional da água-forte era levado aos seus limites por esta espécie de «subversão» técnica. Os traços, marcas e incisões são inscritos na matéria (primeiro a cera, depois a placa de cobre) pela pressão de objectos reais como roupas, soutiens e sapatos em vez do desenho à mão habitual, uma etapa que se manteve desde a origem da técnica. Olhando para o papel algodão final impresso pelas placas de cobre gravadas e passadas pela tinta, temos a ilusão do processo mecânico de captura fotográfica e até nos aproximamos visualmente, nalguns casos, das imagens clínicas obtidas por fotografia com raio-x.
Objectos familiares do quotidiano esmiuçados, cuidadosamente observados, colocados sob lentes de ampliação... Este aspecto do trabalho de Izumi Ueda Yuu dá-se à primeira vista, sobretudo nas representações de peças de vestuário que chamaram mais particularmente a minha atenção na sua recente exposição em Estremoz, no Alentejo, no Palácio do Marqueses da Praia e Monforte, de 28 de Maio a 23 de Julho de 2017. Estas 13 águas-fortes, que escolhemos em conjunto na sua casa em Lisboa para este número do Wrong Wrong, são parte dos trabalhos feitos durante a sua residência em Osaka, no Outotsu Printmaking Studio, em 2015.
Durante esta residência, foram usadas duas técnicas principais da gravura, a primeira está descrita acima, e a segunda, chamada Intaglio Spit Bite, é baseada num desenho feito directamente na placa de cobre lisa, limpa e sem a base de verniz duro. Aqui, Izumi usou uma tinta especial feita de açúcar refinado, que habitualmente derrete em contacto com o ácido para remover as zonas pintadas. Uma vez que o desenho está acabado e seco, a placa de cobre é recoberta com o verniz resistente ao ácido e vai até à substância agressiva para revelar a imagem invertida a partir da imagem negativa anterior. Esta técnica muito difundida de momento é particularmente difícil de dominar, já que o processo do ácido tem de ser repetido várias vezes para durações controladas até que a gravação vá suficientemente fundo de maneira a obter os efeitos desejados, os contrastes, os valores de luz e sombra a quando do passo final da impressão. O ácido usado pode ser mais forte, aplicado directamente na placa para o deixar repousar e agir sob o sol, como Izumi também gosta de fazer.
Olhando para as imagens com a técnica spit bite, os dois mergulhadores e os quatro misteriosos objectos Empty and Full, deixando-nos levar pela sua presença vibratória, revelam uma profundidade que é ao mesmo tempo poética e onírica. Esta disposição poética manifesta a sua cognição imaginal[1], tanto quanto o seu potencial espiritual, sensorial e emocional bem para além da simples captura ou evocação empírica e mecânica da realidade circundante. A subjectividade tem prioridade sobre a presumida visão objectiva do mundo e da sua transmissão. Estas visões, em última análise, altamente subjectivas, transportam-nos para um outro domínio da percepção. Através do seu trabalho, Izumi parece convidar-nos a deixarmo-nos tomar em qualquer momento por viagens oníricas e a deixar a fluidez natural do pensamento, posta em movimento pelas imagens desencadeadoras, a manifestar-se e exprimir-se. A sua visão propõe uma forma de enriquecimento da consciência diurna ao permitir que nela se imiscuam as sensações intersticiais, todas essas doces e quase proibidas rêveries que as exigências prosaicas e aquilo que o quotidiano requer empurram para as periferias mais longínquas da vida psíquica e emocional.
Um pouco como este mergulhador imergindo na energia solar e na sua radiação, Izumi permite-nos ver, sentir, percepcionar a luz inerente a cada objecto, até ao mais familiar de todos, estes objectos e peças de roupa que povoam a nossa vida quotidiana e para os quais acabamos por já não olhar realmente. É o dom de ampliar o banal e de deixar ver a aura de todos estes objectos simples e úteis que se tornam quase invisíveis ao serem essenciais. Mas acima de tudo, convida-nos a mergulhar na nossa própria luz interior e a descobrir que a luz dentro de nós tem o poder de transformar e de transmutar cada coisa, a começar pela nossa visão da vida de todos os dias e da nossa relação com os outros. Ligarmo-nos profundamente com a nossa luz interior é também alimentá-la, de maneira que o seu potencial transformador mágico possa adquirir poder e eficácia para nos levar até uma alegria comunicativa autêntica e a uma ligeireza benéfica que contrasta tanto com o peso e a escuridão dos tempos estranhos e guiados pelo ego em que parecemos viver.
Deste ponto de vista, o trabalho de Izumi Ueda é profundamente guiado pelo espírito. Por um espírito que é ao mesmo tempo contemplativo e malicioso, brincalhão e engenhoso, viajante e descobridor na sua atenção extrema às coisas, aos fenómenos e aos afectos e que revela uma curiosidade integral e encantada. Como Jean Céard escreveu em La Nature et les prodiges (Genève, Droz, 1977), isto é exactamente o poder especial do artista que está preocupado em acordar constantemente em nós o sentido do encanto, tantas vezes adulterado, até mesmo asfixiado pelas preocupações da vida activa. Os trabalhos sobre papel, fotografados para esta publicação digital conseguem tornar estas suspensões espacio-temporais ao mesmo tempo próximas e distantes, fundindo o espectador na impressão permanente e suave da emoção mais subtil.
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Tradução do inglês para português por Nuno Miguel Proença.
Footnotes
^ «Esta noção é uma criação conceptual devida ao filósofo francês Henry Corbin, cujos trabalhos são essenciais para a hermenêutica comparativa. Confrontado à desconfiança de que a filosofia moderna ocidental deu provas relativamente à imaginação, o neologismo ‘imaginal’ acarreta, pelo contrário, uma exaltação filosófica da imagem. Esta exaltação abre ao conhecimento simbólico da realidade dos arquétipos». Alain Delaunay, «Monde Imaginal» in Encyclopædia Universalis.