Muitas vezes se refere a ascendência de Guy de Cointet – mãe linguista, pai militar – numa tentativa de justificar a sua obsessão por códigos e, ao mesmo tempo, ensaiar um acesso a uma obra à partida cifrada, isto é, aceder à obra pela ponte da biografia. Ensaiar um movimento de decifração apresenta, desde logo, duas consequências: a) leva o espectador numa viagem ao passado, onde supostamente se encontrará a verdade – esta viagem ao passado caracteriza-se por uma espécie de escavação, como na arqueologia (arkhê=origem), em direcção à intenção do artista, momento primeiro da obra, pressupondo que é essa mesma intenção que revela o que a obra verdadeiramente é, o que ela no fundo significa; cria-se assim uma hierarquia insensata – o que já aconteceu é mais visível do que aquilo que está à nossa frente; e pressupõe-se igualmente que o artista é o dono da obra, e que a obra é apenas e só o que o artista diz que é; b) a investigação de carácter policial que caracteriza o movimento de decifração de uma obra com base na vida do artista (o que ele viveu, como, quando, o que ele disse, o que queria comunicar ou fazer com o seu trabalho) leva, no limite, a uma extinção da própria obra; num certo sentido, a solução do problema extingue uma obra, tal como acontece com os truques de magia ou com as adivinhas, que, conhecendo-se a solução, não permitem a sua repetição sem se descaracterizarem totalmente; o mesmo acontece com as anedotas – o humor esvai-se à primeira passagem.
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Na galeria da Culturgest podem ver-se duas facetas do trabalho de Guy de Cointet – a obra gráfica e as suas peças de teatro (em vídeo e em representações esporádicas no Pequeno Auditório e na própria galeria, nos cenários expostos que nessas alturas ganham uma outra pertinência e significado). A obra gráfica (desenhos, livros de artista e cadernos de apontamentos) é caracterizada essencialmente por um trabalho sobre a forma visual do signo linguístico, tornando-o muitas vezes abstracto, ou seja, ilegível, ou seja, mudo; já nas peças de teatro, De Cointet joga com os significados, desvinculando-os dos significantes convencionados, inventando palavras absurdas, isto é, sem significado possível, palavras quase impronunciáveis, ou indicando significados para determinados desenhos que no palco aparecem como adereços.
De facto, De Cointet serve-se do texto das suas peças para expor algumas estratégias de codificação (e respectiva decifração). Em I Like Your Shirt, peça breve de 1980, vemos na parede do fundo uma peça com um texto ilegível.
Depois de os actores se referirem a ela como sendo um retrato, e de apontarem para determinadas palavras aí encontradas, como se de um jogo de sopa de letras se tratasse (BATH, AMI, etc), a actriz lê finalmente o texto inscrito na peça; lê-o de baixo para cima e da direita para esquerda (duas inversões): AN ERA OF FREE IMAGINATION HAS JUST BEGUN. Ora, esta súbita descodificação funciona como aquelas folhas de sala que dizem finalmente o que o artista quis dizer com a obra que afinal não diz; este expediente, que De Cointet utiliza amiúde, poderá ser entendido como um comentário a esta situação – textos que explicam a arte, quer dizer, que ensinam como determinadas peças deverão ser lidas e entendidas, que ensinam o que as peças verdadeiramente são, num excesso de didactismo e orientação para o espectador, e de ventriloquismo por parte do artista.
Um processo de codificação assemelha-se ao da adivinha – a resposta precede a pergunta, a adivinha é a pergunta que pede a resposta que a construiu (Quignard).
O RESULTADO PRECEDE A OPERAÇÃO.
Por vezes pode-se perguntar porquê codificar quando se pode ser claro. Ora, essa pergunta não possui aqui pertinência, dado que o objectivo parece ser precisamente trabalhar o código, ou a sua forma; apresentar – dizer – o código; o código deixa de ser um meio, algo funcional em função de um outro fim, para passar a ser uma lente que se turva, que se embacia, uma lente que se faz ver.
O CÓDIGO É A MENSAGEM.
É neste contexto que aparece a escrita em espelho, aptidão particular de De Cointet; o texto em espelho, aliado a uma outra rotação, apresenta-se-nos duas vezes ao contrário, e adquire, por assim dizer, um véu de indecifrabilidade; está completo à nossa frente mas incompreensível, isto é, o que vemos é apenas o signo linguístico, a letra como desenho, inaudível.
A PALAVRA COMO IMAGEM, A LETRA PARA VER, O TEXTO MUDO.
Ora, em geral descuramos a forma das palavras, das letras que as constituem, dos números quando os lemos. Isto acontece porque o significado das letras, palavras, números, pulveriza as suas formas. O significado invisibiliza (e inviabiliza) a forma da palavra; a palavra é escondida pelo seu significado convencionado que, por sua vez, se esconde atrás da sua forma. O significado – aquilo a que a palavra dá o nome – empurra-a para fora do campo visível, esconde-a atrás do seu próprio sentido. Quando lemos uma palavra, lemos na verdade a ausência que ela nomeia.
SÓ A PALAVRA ILEGÍVEL EXPÕE A SUA GEOMETRIA.
A estupefacção para com a linguagem sucede em momentos de incompreensão, como com os neologismos. Ora, os neologismos criam-se devido a uma suposta lacuna na língua, existe algo que não possui nome – uma obscenidade; o nome não provém das coisas, as coisas nascem mudas e anónimas, impronunciáveis. Algo diferente acontece, por exemplo, quando se cria uma palavra que não possui ainda significado, uma palavra que nada nomeia nem substitui, que, precisamente, não está em vez de uma ausência – uma aberração.
A seguir à estupefacção inicial, sucede a especulação, ou seja, a indagação, delírio, desvario a partir de todos os indícios possíveis – como na teoria da conspiração, como com o ciumento ou o paranóico, para quem tudo é indício de outra coisa –, na tentativa de se lhe colar um significado, uma justificação lógica para a sua existência, ou seja, uma correspondência que salve a novel palavra. É este o movimento do espectador de certos trabalhos de De Cointet – especular à frente de várias espécies de neologismos impronunciáveis.
TWOFU
FFDOT
Se a palavra não funciona de nenhuma forma (previsível ou imprevisível), se não puder ser lida (demasiadas consoantes seguidas, por exemplo), acaba por se transformar num conjunto anódino de letras, e as letras num conjunto pretensamente insignificante de formas extravagantes, como no seu jornal ACRCIT. (A Culturgest fez uma edição de 1500 exemplares deste jornal, o qual está disponível numa pilha no chão de uma das primeiras salas da exposição; a propósito deste facto, lembrei-me que alguém disse (Baldessari, Weiner?) que os posters de Gonzalez-Torres – expostos em pilhas no chão das galerias – funcionavam como um sistema de vigilância ou de perseguição, pois as pessoas que os transportavam à saída das exposições eram facilmente detectáveis na rua com aqueles grandes rolos debaixo do braço; com este jornal gigante acontece a mesma situação nas ruas de Lisboa – à saída da Culturgest, os espectadores são facilmente identificáveis e perseguíveis.)
São vários os trabalhos gráficos expostos na galeria onde, em baixo do desenho incompreensível mas quase legível, se pode ler uma frase-legenda-título enigmática. Alguns desenhos parecem palavras constituídas por letras simplificadas ao ponto de se terem tornado ilegíveis.
TAL COMO A MELHOR MENTIRA É AQUELA QUE MAIS PRÓXIMA ESTÁ DA VERDADE, O MAIS INTRIGANTE É AQUILO QUE, NÃO SENDO CLARO, SE APROXIMA DA EVIDÊNCIA.
Poder-se-á dizer que estes trabalhos se desenvolvem no hiato entre uma espécie de sigla e o extenso, entre o hieróglifo e a legenda-tradução. Algumas destas peças têm como legenda um simples ponto de interrogação – em forma de pleonasmo, dir-se-ia –, ou mesmo umas reticências. De Cointet parece dizer-nos, fill the gap, ou apenas, feel the gap, porque é nesse intervalo entre título e forma, ou seja, entre forma e significado, entre legenda e imagem, que estes desenhos poderão interpelar o espectador. Sem significado estável a obra não se acaba, não se sedimenta ou estabiliza – a verdade é impossível. No entanto, a páginas tantas de alguns dos seus cadernos de apontamentos – expostos fisicamente na galeria ou em vários ecrãs onde são folheados –, temos acesso a sistemas de codificação de letras, que depois aparecem a formar palavras ilegíveis (mas visíveis) ao longo da sua obra gráfica.
Estes sistemas de codificação são, para os respectivos desenhos, soluções como aquelas que se encontram nos passatempos de jornal. A exposição de alguns destes sistemas torna-se útil de um ponto de vista documental, pois disponibiliza um acesso ao processo criativo de De Cointet; no entanto, estes não se tornam imprescindíveis na experiência da sua obra, porque a pergunta que o código cria é similar ao que acontece num contexto artístico – a pergunta em relação ao código é: o que quer isto dizer? o que diz aqui? e este parece ser o campo vago no qual De Cointet trabalha.
INTRIGA, CÓDIGO, ENIGMA, SEGREDO, JOGO– PALAVRAS COM G DE GUY.
Em Tell Me, peça de 1979, visível num dos monitores presentes na galeria da Culturgest, três mulheres – Michael (usado como nome feminino), Olive e Mary – esperam Mark, que, tal como Godot, não chega a aparecer. Mary e Michael entram na sala; Mary segura uma pintura que Michael lhe tinha acabado de oferecer; na pintura, entretanto pendurada na parede, lêem-se as letras A, D, M, T e S. Referindo-se a ele como sendo um mapa antigo, Michael decifra-o: «Deep in the vast heart of Africa (apontando para o A), encircled by treacherous Desert (apontando para o D), shielded by hazardous Mountains (apontando para o M), guarded by fierce and savage Tribes (apontando para o T), lies a legendary treasure: the fabled storehouse of King Salomon mines (apontando para o S).» Poder-se-á dizer que se trata de uma espécie de explicitação do princípio da arbitrariedade do signo linguístico – o significante nada tem que ver com o significado; trata-se de uma convenção, um protocolo; o protocolo vigente tanto é este como poderia ser outro – é arbitrário; quer dizer, não é previsível nem lógico, e De Cointet aproveita-se desta fatalidade.
A PALAVRA MOSQUITO PODERIA SIGNIFICAR CARACOL.
Ainda em Tell Me, um mosquito voa à volta da cabeça de Mary mas ela acaba por apanhá-lo e diz, «These snails. They are all over the place this time of the year». O trabalho de Guy de Cointet encontra-se no intervalo entre a palavra e o significado, entre a legenda e a imagem, entre a forma e a leitura.
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UM FRANCÊS NA AMÉRICA
Guy de Cointet nasceu em Paris no ano de 1934; em 1966 parte para Nova Iorque e, passados dois anos, segue para Los Angeles; aí morreria aos 49 anos. Em 1996, Paul McCarthy organiza em Grenoble uma exposição de artistas europeus esquecidos, que viveram em Los Angeles, com De Cointet, Bas Jan Ader e Wolfgang Stoerche; na edição de Verão de 2007, a revista Artforum dedica-lhe um extenso dossier. Desde essa altura vai aparecendo amiúde nas publicações de arte e em exposições pelo mundo fora.
A galeria Air de Paris disponibiliza um vasto dossier acerca do artista.