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As bagas eram de um azul profundo e de uma forma esférica quase perfeita. Após o seu sinal, os seus homens logo se apressaram a saltar sobre os arbustos, devorando esse estranho fruto como se não houvesse amanhã. Contemplando esta verdadeira orgia, Portolà sorria perante a sua sorte divina. O seu contentamento mostrava-nos porém a causa de tanto desespero. Dentes escuros, repletos de escorbuto, meses de mar a fio sem pôr pé em terra firme. Para muitos destes homens, aqueles que sobreviveram desta tripulação, o norte já tinha ficado lá para trás. A única coordenada que os tinha levado até ali, tinha sido a obstinação do seu capitão, Gaspar de Portolà, bem como os desenhos de Miguel Constansó, o cartógrafo catalão responsável por mapear aquela expedição. Portolà debruçado sobre a areia, desenhava círculos com o seu dedo indicador. À medida que desenhava um novo círculo na areia, reparava sobretudo no círculo que desaparecia por trás, esbatendo-se nos ínfimos grãos de areia. Repetia este gesto vezes sem conta. Parava de vez em quando para fitar o interior da floresta, procurando seguir os seus homens que subiam clareira acima. Neste tempo de espera e de algum inquietamento – pois sabia que os índios da tribo Quiroste andavam por aí – elaborava diferentes possibilidades de entrada em terra. Nestas elaborações de raciocínio militar, tranquilizava-lhe o calor da areia e os finos grãos que lhe escapavam entre as suas mãos. Até que um grito ecoou entre aquelas árvores gigantes, e estérico Constançó gritava «aigua dolça! aigua dolça!» ajoelhando-se na areia, mostrando o seu mapa aos céus, como que agradecendo aquilo que adivinhara. Portaló por seu lado sussurrava tranquilamente para si «cañada de la salud», enquanto calçava novamente as suas botas.
Entre aquelas enormes árvores de casca avermelhada, os homens banhavam-se nos vários ribeiros, comendo aquelas bagas estranhamente esféricas e azuis. Celebravam com elas, pois tinham sido estas as bagas que os tinham conduzido até àquele ribeiro de água doce, recuperando desta forma o ânimo do seu corpo. Portaló, depois de saciada a sua sede, saboreava o interior carnudo e doce daquelas bagas. Apreciava o ligeiro amargo da sua cobertura fina, que lhe fazia sentir ligeiros picos na sua língua, ao mesmo tempo que olhava hipnotizado para a sua cor. O mesmo azul, a mesma forma esférica, foi o que levou William Mulholland a fotografar essas mesmas bagas, no então designado Big Basin Park. William fotografava «com a sua portátil e fácil de usar» Brownie, sendo que o interesse de William ficava-se pela forma e não tanto pelo potencial comestível destas bagas.
Não conseguido identificá-las, preferiu não as comer, com receio de sofrer de algum tipo de envenenamento. Sendo o Superintendente do Departamento das Águas de Los Angeles, ou o «el zanjero del oeste», como alguns dos seus guias mexicanos o chamavam, William não poderia deixar de ser convidado para a inauguração oficial do primeiro parque natural da Califórnia. Assim que disparou o obturador, voltou ao trilho e ao grupo com quem caminhava. Entre as «small talks» habituais dos seus colegas, as elaborações mentais de William estavam mais para os lados da Sierra Nevada: em Owens Valley. Sentia-se angustiado. O discurso que dera dias antes perante os camponeses deste vale, tinha-lhe deixado um aperto estranho no peito. Sabia que aquilo que tinha acabado de prometer, não iria na realidade acontecer. A verdade é que com aquela nova directiva federal, as planícies verdes de Owens Valley iriam desaparecer numa questão de anos, e com elas a fragrância da Artemisia tridentata e o seu pontilhado de flores amarelas. O lago tornar-se-ia certamente numa superfície árida, e à volta do vale seria impossível de se plantar seja o que for. Após este fluxo de considerações tão certeiras e claras na sua consciência, volta à sua frase de sempre e sussurra para si próprio: Los Angeles precisa de água, será para um bem maior, para um futuro melhor de todos os angelenos.
O índio olha entre as grandes árvores de casca vermelha, e contempla o seu inimigo com algum desdém. O índio observa, o índio aprende. O índio aprende com o seu inimigo. Então colhe uma dessas bagas, aquelas que fizeram parte da sua infância e adoçaram desde sempre toda a sua juventude. Segurando-as ao nível dos seus olhos e examinando-as de forma tímida e meio desajeitada com um monóculo, pela primeira vez repara que as bagas eram de um azul profundo e de uma forma esférica quase perfeita. Após o seu sinal, os seus homens logo se apressaram a saltar sobre os arbustos, devorando esse estranho fruto como se não houvesse amanhã. Contemplando este verdadeiro banquete, Portolà sorria perante a sorte do seu destino. O seu contentamento mostrava-nos porém a causa de tanto desespero. Dentes escuros, repletos de escorbuto, meses de mar a fio sem pôr pé em terra firme. Para muitos destes homens, os poucos que sobreviveram da tripulação, o norte já tinha ficado lá para sul. A única coordenada que os tinha levado até ali, tinha sido o carisma do seu capitão, Gaspar de Portolà, bem como os esboços de Miguel Constansó, o cartógrafo catalão incumbido de mapear aquela expedição. Portolà caminhava descalço sobre a areia. Parava de vez em quando para fitar o interior da floresta, procurando seguir os seus homens que subiam clareira acima. Neste tempo de espera e de algum inquietamento – pois sabia que Charquin andava por perto – elaborava diferentes possibilidades de entrada em terra. Nestas elaborações de raciocínio militar, dava-lhe alguma tesão sentir os finos grãos de areia entre os mais ínfimos espaços dos seus pés, livres por agora do cabedal firme das suas botas. Até que um grito ecoou entre aquelas árvores gigantes, e logo estérico Constançó gritava «aigua dolça! aigua dolça!» gesticulando e mostrando o seu mapa aos céus. Portaló por seu lado, sussurrava «Santa María de la Soledad», desenhando um triângulo na areia.
Entre aquelas majestosas coníferas de casca avermelhada, os homens banhavam-se nos vários ribeiros, comendo aquelas bagas estranhamente esféricas e azuis. Celebravam com elas, pois tinham sido estas as bagas que os tinham conduzido até aquela bela cascata de água, saciando a sua sede, animando o seu espírito. Portaló saboreava o seu interior doce e carnudo. Dava-lhe imenso prazer sentir o romper da película fina destas bagas. O seu esguicho libertava um suave amargo que lhe fazia sentir ligeiros picos na sua língua. A mesma cobertura fina, o seu gradiente uniforme, foi o que levou William Mulholland a fotografar essas mesmas bagas, no então designado Big Basin Park. William fotografava «com a sua portátil e fácil de usar» Brownie, porém o interesse de William ficava-se pela estética e não tanto pelo seu conhecimento. Desconhecendo estas bagas, preferiu não arriscar em prová-las, com receio de algum tipo de indisposição. Sendo o Superintendente do Departamento das Águas de Los Angeles, ou o «el zanjero del oeste», como alguns dos seus trabalhadores mexicanos o chamavam, William não poderia deixar de ser convidado para a inauguração oficial do primeiro parque natural da Califórnia. Assim que disparou o obturador, voltou ao trilho e ao grupo com quem caminhava. Entre conversas de negócios, as elaborações mentais de William estavam mais para os lados da Sierra Nevada: em Owens Valley. Um vale conhecido pelo seu majestoso lago, rodeado por luxuriantes prados a perder de vista. William dera dias antes, um discurso perante os agricultores de Owens Valley, que o deixou com um aperto no peito. Sabia que aquilo que tinha acabado de prometer, não iria na realidade acontecer. Sentia-se angustiado. A verdade é que com aquela nova directiva federal, as planícies verdes de Owens Valley iriam desaparecer numa questão de anos e com elas a fragrância da Artemisia tridentata. Após este fluxo de considerações tão claras na sua cabeça, volta à sua frase de sempre e sussurra para si próprio: Los Angeles precisa de água, será para um bem maior, o progresso está aí, não se pode parar.
O índio olha entre as grandes árvores de casca vermelha e com as devidas precauções salta a vedação. À medida que olha em volta, entra discretamente no jardim de um dos apartamentos de Mulholland Drive. Ninguém parece estar em casa, é dia de semana. Para seu espanto, o índio encontra uma piscina enorme sem água. No seu fundo, repara que pelas fissuras, crescem uns arbustos com umas bagas de um azul profundo e uma forma esférica quase perfeita. Após o seu sinal, os seus homens logo se apressaram a saltar sobre os arbustos, devorando esse estranho fruto como se não houvesse amanhã. Contemplando esta verdadeira orgia, Portolà sorria perante a sua sorte divina. O seu contentamento mostrava-nos porém a causa de tanto desespero. Dentes escuros, repletos de escorbuto, meses de mar a fio sem pôr pé em terra firme. Para muitos destes homens, aqueles que sobreviveram da tripulação, o Norte já tinha ficado lá para trás. A única coordenada que os tinha levado até ali, tinha sido a obstinação do seu capitão, Gaspar de Portolà, bem como a eloquência de Miguel Constansó, o cartógrafo catalão responsável por mapear aquela expedição. Portolà caminhava sobre a areia quente, arrastando atrás de si uma ramagem seca. Parava de vez em quando para fitar o interior da floresta, procurando seguir os seus homens que subiam clareira acima. Neste tempo de espera e de algum inquietamento – pois sabia que os temíveis Ohlone andavam por aí – elaborava diferentes possibilidades de entrada em terra. Entre estas elaborações de raciocínio militar, dava-lhe algum conforto ouvir o som suave da ramagem em contacto com a areia, que atrás de si ia desenhando diferentes linhas. Até que um grito ecoou entre aquelas árvores gigantes, e estérico Constançó gritava «aigua dolça! aigua dolça!» deitando-se na areia, esperneando-se e mostrando o seu mapa aos céus. «Ostia puta…» dizia para si próprio Portaló, jogando a ramagem para o mar.
Entre aqueles enormes pinheiros de casca avermelhada, os homens banhavam-se nos vários ribeiros, devorando aquelas bagas estranhamente esféricas. Celebravam com elas, pois tinham sido estas as bagas que os tinham conduzido até à linha de água, salvando-os da fome e da sede. Portaló saboreava o seu interior carnudo e doce. Apreciava sobretudo o seu sabor final amargo, que lhe fazia adormecer ligeiramente a língua. Foi esse mesmo toque amargo, que fez William Mulholland recordar-se dos seus longos dias de infância passados nas encostas de Big Sur, onde apanhava diferentes frutos silvestres com os seus pais. Ao provar estas bagas de um azul profundo quase negro, William sentiu um formigueiro no seu peito que rapidamente lhe invadiu todo o corpo. Foi nesse momento, que teve a clarividência que alguém estranho e ao mesmo tempo familiar, dizia-lhe repetidamente: Los Angeles precisa de água, será para um bem maior, para um futuro melhor de todos os angelinos.
O índio olha entre as grandes árvores de casca vermelha e contempla o seu inimigo com curiosidade. Pegando novamente no seu skate, desta vez arrisca um «Rock 'n' Roll Boardslide», deslizando sobre a lateral da piscina seca. Dizem que a piscina não é dele, dizem que a casa não é sua, mas ali sente-se parte de algo maior. Sentado na relva, o índio repara que junto à vedação crescem aquelas bagas que fizeram parte da sua infância e adoçaram desde sempre toda a sua juventude. Pela primeira vez repara que as bagas eram de um azul profundo e de uma forma esférica quase perfeita.
Tradução do inglês: Gloria Dominguez
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* Este lago foi seco em 1923 e é considerado o pior problema de poluição de poeira nos EUA. Para além do tipo de pó cancerígeno, tem acumulado níveis elevados de arsénio e boro, bem como bário, chumbo e mercúrio.