Está patente, na Galeria Bessa Pereira, uma exposição de peças de mobiliário do arquitecto e artista plástico Fernando Pinto Coelho, que se assemelham ao espírito do mobiliário de vanguarda italiano que se fazia nos anos 80.
A exposição, que dá pelo nome: «Quebrando Barreiras», apresenta um grupo de peças que foram criadas pelo arquitecto em 1981, curiosamente no mesmo ano em que Ettore Sottsass fundava o grupo Memphis, ao que parece, na sua casa, e na companhia dos seus amigos, enquanto bebiam um vinho branco italiano, e ouviam uma canção de Bob Dylan. O nome do grupo provinha obviamente da canção de Dylan, que se chamava: «The Memphis Blues Again», e demarcava o início de uma nova era para o design, mais ligada à vida, ao quotidiano, às diferentes culturas, à Pop Art. Uma era que, de modo corajoso, anunciava a volúpia de cores, fulgurantes, e o uso da decoração, sem culpa e preconceito. Sottsass afastava-se assim de uma acepção industrialista, e de uma ortodoxia do movimento moderno, para se encadear numa lógica mais vanguardista, que permitia um discurso do design mais complexo, híbrido, ambíguo, irregular, ao invés de uma imposição do claro e do directo, oferecido pela lógica racionalista, esta última que impedia uma experimentação mais livre, de possibilidades, lúdicas e utópicas.
No mobiliário de Sottsass misturavam-se, em simultâneo, diferentes dimensões estilísticas como o «moderno», o «Kitsch» o «popular», potenciando, assim, uma vertente mais simbólica, também importante, nos objectos de design.
E é neste ambiente de florescimento pós moderno que Fernando Pinto Coelho desenvolve o mobiliário, que foi desenhado especialmente para um cliente, e que consistia em desenvolver peças para um bar, privado, de uma casa particular em São Martinho do campo, no norte do país. Sendo extraordinária a actualidade das peças, e a riqueza formal que manifestam, na altura em que foram desenhadas, evocam de forma vibrante e surpreendente a época que então se vivia, estilisticamente, nos anos 80.
Na pintura de Jorge Queiroz, as paisagens bucólicas terminam em escoadas lávicas. Unem a pintura ao desenho, alternam entre a turbulência do magma das tintas e a acalmia das camadas finas, traduzidas em aguadas planas dadas pelo pintor. A matéria, concretizada, ora em desenho ora em pintura, estende-se energeticamente sobre a tela, dando a conhecer elementos que se repetem ao longo das várias obras do pintor, e que podem agora ser vistas até Setembro, na exposição «A Invenção do Sim e do Não», Galeria ZDB.
Dos vários elementos que se repetem, uma pequena mancha, de contornos femininos, deixa-se entrever na tela, por vezes acompanhada por outra figura, outras vezes isolada, acentuando uma narrativa melancólica que emerge, em diferentes contornos e momentos do quadro. Estas lavas, que oscilam entre a viscosidade orgânica e a bidimensionalidade do plano – esta última tornada possível por meio de finas camadas de tinta –, culminam, como que, num complexo sedimentar, urdido no quadro , de «ritmos» e «marcas do tempo».
«Diante da imagem, estamos sempre diante do tempo» diz-nos Didi-Huberman. E diante dela, diante da pintura de Jorge Queiroz, somos obrigados a «desapossarmo-nos» do olhar do «especialista», e a «reconfigurar» constantemente o nosso olhar, sobre as obras do passado, sobre as obras do presente, sobre as obras do artista, e até sobre a própria história de arte. Os quadros, apresentados nesta exposição, não cessam de nos lembrar que as imagens sobrevivem às nossas catalogações, aos rótulos que queremos imprimir sobre as obras, aos chavões. E Jorge Queiroz desperta-nos incessantemente para essa realidade. Nas obras brotam formas que aludem a uma profusão de referências. Desde o misterioso, ao traumático – associado, muitas vezes, por Foster, ao surrealismo – até ao gestual, alternados com o seu quase geometrismo em algumas obras. Outras, em oposição, evidenciam-se entre o figurativo e o abstracto, este ultimo lembrando Worringer e a empatia pelo abstraccionismo.
Impossível não mencionar o tempo nestas obras. O tempo que obriga a questionar os limites da interpretação, do crítico, ou até do curador. A questão em Gioni, impõe-se: «não se trata aqui de fazer coisas com a arte, mas sim como fazer coisas para a arte». E nesse sentido, reconhecemos, através de Eco, a responsabilidade dos sujeitos envolvidos na obra de arte: o papel do crítico, o papel do curador, e os limites da obra de arte, que nem sempre é receptiva a toda e qualquer interpretação.
Por isso, a matéria escoa, fluída, sobre as telas de Queiroz, e testemunha a evidência de que, segundo Foster, as «imagens estão ligadas a referentes, a temas iconográficos, ou a coisas do mundo real». Assim, o que «todas as imagens podem fazer é representar outras imagens, e que todas as formas de representação (incluindo o realismo) são códigos auto-referênciais». A imagem como referencial e/ou simulacro. Em Queiroz, o simulacro das imagens de trauma, que por vezes parece manifestar-se por meio de repetições, traduz assim uma «fixação obsessiva no tema da melancolia», usando as palavras de Lacan, e a propósito de surrealismo. Carla Carbone
Para Dayana Lucas a disciplina do desenho é um assunto sério, e tema de reflexão profunda e constante. As esculturas da artista encontram-se suspensas numa das galerias do Museu de Serralves, e apelam aos cinco sentidos. Na exposição, «Conversa com o branco», pendem como linhas soltas. Definem trajectos que conduzem o visitante a uma profusão de caminhos possíveis. Num princípio de «site specific», as várias linhas espalham-se e inundam a galeria, como ramos misteriosos nos bosques, como traços que se confundem com as paredes brancas da galeria e aludem à folha branca como manto, perpassado por riscos. A posição das esculturas estimula o visitante a procurar sentidos, orientações para os seus trajectos, assim como a despertar laivos de angústia. Não há propriamente um princípio e um fim na exposição. Porque a obra é ela própria a sala e as peças, que se multiplicam aleatoriamente. Ao visitante é dada essa liberdade de escolha.
No espaço é-se, depois, induzido a ouvir um som que acompanha, ao longo do trajecto, as peças. Este parte de uma manipulação de sons feita por Jonathan Uriel Saldanha, que teve origem em outros produzidos por Lucas nos vídeos introdutórios à exposição. Movimentos circulares repetitivos feitos na tentativa de produzir fogo a partir da fricção entre duas pedras ou a passagem dos dedos sobre vidros são a principal matéria prima sonora com que Saldanha trabalha.
A experiência, essa, é cinestésica. O desenho como gesto, em sentido mais lato significa «saber ver» e, no sentido do americano Kimon Nicolaides, saber ver entende-se o uso, o mais possível, dos cinco sentidos: «porque todos os sentidos cumprem um papel na observação» e porque só conhecendo o sabor ou a textura de alguns objectos podemos distingui-los dos demais e desenhá-los: «reconhecemos a diferença entre um piano e um violino quando os ouvimos na rádio sem ser obrigatório os vermos». Vemos através dos olhos, não somente com os olhos. Vemos através do conhecimento que temos das coisas, do cheiro, do toque, do som que se difunde. Por isso «não podemos confiar somente na visão», diz-nos ainda Nicolaides. Ver não é suficiente. Carla Carbone
No ano de 1967, Germano Celant, um crítico de arte italiano, chamava arte povera, ou arte pobre, a um conjunto de práticas artisticas que então se desenrolavam em Itália e que pretendiam romper com tudo o que dissesse respeito a uma imposição pop e consumista.
A exposição «Marisa Merz – O Céu é um Grande Espaço», recentemente patente no Museu de Serralves, reavivou esse período próspero em Itália e proporcionou uma oportunidade singular para experienciar e vivenciar o trabalho da artista que foi a única mulher a figurar na lista dos artistas que compreenderam este movimento na década de 60 do século passado. Marisa Merz foi esposa de Mario Merz, o artista conhecido por cobrir muitas das suas peças com letras a néon.
As peças de Marisa Merz surgiram, na época, em exposições individuais e colectivas, mas os poucos registos fotográficos hoje existentes apresentam-se de difícil escrutínio, dadas as características das peças, muitas delas estruturadas de forma delicada, como os pequenos sapatos impressionantemente tricotados em fio de cobre ou nylon.
Existe, porém, uma fotografia a preto e branco desse período onde é possível observar os mesmos sapatos delicados tecidos em fio de nylon, posicionados sobre a areia negra de uma praia. A imagem, dada a destreza do fotógrafo, denuncia a leveza que se extrai desses pequenos sapatos, evidenciada ainda pelo lugar em que se encontram, um espaço amplo e vago. E é justamente esse espaço, amplo, que é encarado como mais uma qualidade das coisas fruídas.
Na extensa exposição de Marisa Merz houve uma preocupação de tornar o espaço, ele próprio, protagonista na exposição. Assim, havia espaço para imaginar as peças na casa da artista, nomeadamente na cozinha, onde passava a maior parte do seu tempo. Como aliás acontecia com as «Living Sculptures», esculturas metálicas pendentes no tecto e que ostentavam uma aparência simultaneamente acolhedora e ameaçadora, muito devido às formas redondas e à sua envergadura. Na cozinha, como no resto da casa, as peças acompanhavam a vida da artista – há uma peça tricotada a fio de nylon com o nome da filha: Bea.
Os objectos que Merz criava eram assim uma extensão da sua vida, da sua interioridade, do seu pulsar. Numa clara oposição à comercialização da arte, e ao princípio dogmático da consistência da obra, de que falava Celant, aquando do seu ensaio «Arte Povera – Notes for Guerrilla War».
Numa tentativa de aproximação a uma arte de génese mais conceptual, e menos estilística, as peças de Merz parecem difíceis de categorizar ou de integrar numa tipologia específica. Livre de um discurso visual e de uma certa historicidade, as obras da artista mostram-se sensíveis aos acontecimentos do dia a dia, «aos contemporâneos do presente» (Celant, 1967).
O artista é visto, desse modo, não como produto dessa imposição do consumo, mas como ser humano idealmente separado desse sistema. O homem apresenta-se assim perante a sociedade como um produto que se vê forçado a autocorrigir-se em função desse sistema, e é essa condição de permanente ajustamento que os artistas deste movimento contestavam. Para Celant, por isso, o artista deveria ter a função de apresentar alternativas a esse sistema e não ser um mero colector cleptomaníaco das coisas do consumo.
É por isso impressionante a variedade de materiais que Marisa Merz e os restantes artistas do movimento usaram. Havia uma preocupação marcadamente experimental e sensitiva nas suas escolhas. Eram valorizados os sentidos como o tacto, o olfacto, a audição. Recordemos as instalações sonoras de Gilberto Zorio, por exemplo. Especialmente a instalação «Microfoni», onde o artista procurou levar para a galeria a experiência que vivenciou num espaço público, o surgimento e o desaparecimento dos passos das pessoas que percorriam uma praça, ou as conversas que troavam e que de súbito desvaneciam, ao passarem apressadas. Zorio dispôs, por isso, alguns microfones no espaço da galeria permitindo a multiplicação de vozes. Carla Carbone
Até dia 31 de Dezembro, o Palácio Condes da Calheta acolhe, nas suas instalações, a exposição «Brasil Hoje». Comissariada por Frederico Duarte, e inserida na programação do MUDE, a exposição, apresenta um corpo de projectos que revela um entendimento mais diversificado de produção, num país que, durante muito tempo, foi associado a uma estética tímida, unidimensional, de cariz unicamente racionalista e industrialista. Algo invisível, face ao panorama internacional.
Nesse sentido, vêem-se, ao longo do espaço da exposição, valorizados temas como a cultura local, a memória, a identidade, e ainda a sociedade brasileira, em toda a sua dimensão e complexidade. Podem ver-se, por isso, exemplos de inúmeras peças da mestria brasileira como a «Bomba Hacker», do colectivo Flui; a «Cerâmica do Cabo», que conta com a colaboração entre oleiros pernambucanos e académicos; os «Objectos da Floresta», de Andrea Bandoni, o «Pavilhão do Brasil», da T+T Projetos e dtdg; as conhecidas «Havaianas»; a revista «Habitat», com as suas frases apologistas de um design que privilegia o autóctone, o regional, o verdadeiramente popular do Brasil; entre muitos outros projectos patentes na exposição.
Todo o espaço problematiza a questão da identidade do design brasileiro, coabitando valores imersos nos princípios da Ulm, ainda influenciando a produção e ensino do design no Brasil, com novos valores, estes últimos mais atentos ao pulsar genuíno da cultura popular do país. Um país de contrastes sociais, de caos nas grandes cidades, de estética da favela.
A «história do design no Brasil é recente», disse-nos algures Gustavo Amarante Bomfim, em 2008, e viu a luz do dia quando os irmãos Campana começaram a emergir internacionalmente com a sua cadeira Favela. Com ela levaram a mensagem além fronteiras: que o design brasileiro não podia continuar a reproduzir uma cultura de design que não lhe pertencia, a cultura do industrialismo alemão, da racionalidade finlandesa, da miniaturização japonesa. Fizeram ver que o objecto de design não existe e não se desenvolve sem o seu contexto, no sentido de Pierre Bourdieu. O design brasileiro não pode criar a sua identidade sem se servir da sua própria cultura, da memória das suas gentes, da sua geografia, do seu clima. Durante um longo período o design brasileiro vivia na sombra dos principios regidos pela herança “bauhausiana”, ou da matriz ulmiana, de Tomás Maldonado, seguida também pelas academias.
As frases exibidas no escaparate da «Habitat» presente na exposição, exprimem bem essa emergência na libertação dos princípios racionais e na adopção de um design mais próximo da realidade brasileira. Alguns postais, de cores múltiplas, fornecem uma selecção de frases, entre elas, a mais impactante: «Os puristas são enfadonhos e inúteis», de Emilio Villa, ou ainda, entre muitas outras, a frase de Antonio Rangel Bandeira: «Em arte, o melhor meio de atingir o universal é a partir do regional, ou do nacional. É fincar-se nas raízes do folclore, ou do popular, até transformar-se numa expressão do seu próprio povo». Carla Carbone