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Espero hoje nada mais que a minha disponibilidade,
nada mais que esta sede de ir ao encontro de tudo. [1]
(Andre Breton, A equação do objecto encontrado)
Haverá algo mais subjectivo do que um objet trouvé, esta espécie de objecto «encontrado» cuja «objectividade» assenta num vislumbre do sujeito? Mais do que tudo, o objet trouvé deve perder a sua raison d'être original para se tornar nesta nova coisa com um novo significado. Essa será porventura uma das razões para ele ser «objet trouvé» e «objet perdu» (objecto perdido) ao mesmo tempo. A língua alemã distingue entre finden (encontrar) e erfinden (inventar), dois verbos que parecem coincidir com o francês trouver (inf.) e o seu uso no objet trouvé, que é sempre a invenção de alguma coisa nova, ainda que seja baseada nos antepassados. Por isso mesmo pode ser arte.
Entre o encontrado e o perdido, entre a investigação activa e o alerta passivo semelhante à atenção igual em psicanálise (que poderá requerer um género de «perda do eu» por parte do sujeito), a experiência do objet trouvé acontece, nesse mesmo interstício de tempo e espaço onde reside a coincidência. Isto não se passa exclusivamente no «objectivo», no mundo dos objectos ou no olhar do sujeito, mas no «entre», onde a novidade do que existe pode chegar à consciência. Deste modo, o objet trouvé, visto como o acontecimento do trouvaille [descoberta] (finding), depende do reconhecimento de alguém e, de forma mais geral, na consciência de alguém ter encontrado o que estava perdido no pântano da indiferença. E pela sua ancoragem no contexto do ordinário, o objet trouvé é susceptível de se destacar do mesmo. Mais uma vez, o objet trouvé parece ser um fenómeno paradoxal, que questiona as fronteiras do que é ordinário e extraordinário, o que é visto conscientemente (visível) – no melhor caso, visto como «nunca visto antes» (jamais vu) – e não visto (invisível como ser demasiado déjá-vu).
A palavra francesa objet trouvé, ela mesma, que se destaca da Iíngua inglesa como um corpo estranho, enfatiza esta paradoxal relação-dentro-fora. O termo está dentro da língua e fora dela. Para ser inteiramente compreendido, precisa da referência exterior – a língua francesa e o contexto surrealista – que necessariamente traz o risco de equívoco, ao passo que a sua tradução «objecto encontrado», conduz-nos a um empobrecimento e descontextualização que, mais uma vez, implicam o risco de falsificação. Este aspecto literal de intraduzibilidade coloca o objet trouvé na mesma prateleira de Unheimliche, cuja tradução Inglesa como «the Uncanny» é manifestamente insuficiente. Este terreno comum linguístico não é de todo o único paralelo entre estes dois conceitos:
Como Freud sublinha no seu texto epónimo The Uncanny de 1919, o adjectivo alemão unheimlich (que literalmente significa «o não familiar») é caracterizado pela sua paradoxal significação na qual dois significados opostos, «familiar» (heimlich) e não familiar/estrangeiro/estranho (unheimlich), coincidem. Isto levou Freud à definição de «the Uncanny» como um sentimento que «nos conduz para o passado, para aquilo que é velho e familiar»[2]. Por outras palavras, «este uncanny, na realidade, não é nada de novo ou estranho, mas algo que é familiar e há muito estabelecido na mente, mas que se tornou alienado através de um processo de repressão»[3].
Deste modo, das Unheimliche, tal como o objet trouvé, baseia-se no carácter extraordinário do ordinário. Pressupõe o reconhecimento do familiar no estrangeiro, estranho ou supreendente, ou de outra forma inversa. Para Freud, trata-se uma memória esquecida (reprimida) a emergir do inconsciente o que caracteriza a experiência de Unheimliche, muitas das vezes activada aquando de um encontro com um objecto familiar. Portanto, o «Uncanny» torna-se ele mesmo numa imagem do inconsciente e, com num sonho, pode ser usado como uma das formas para compreender os mecanismos da psique humana. Visto que primeiro que tudo é uma sensação exepcional, das Unheimliche é comparável à surpresa no momento de trouvaille do objet trouvé. Ainda que seja mais frequentemente associado ao pavor do «uncanny», pode de facto também evocar um encantamento.
André Breton decididamente conhecia a obra de Freud, mas será que leu das Unheimliche, este texto desconhecido, para não dizer esquecido, do corpo de trabalho de Freud, redescoberto somente nos anos 60 e 70 por teóricos como Lacan e Derrida? Em L'equation de l'oebjet trouvé o líder surrealista aponta para a ligação entre objet trouvé e sonho, e demonstra estar atento à função dos mesmos. Ele descobre que «o encontrar do objecto preenche aqui rigorosamente a mesma função do sonho, no sentido em que liberta o indivíduo de escrúpulos afectivos paralizantes, conforta-o e fá-lo compreender que o obstáculo que ele julgara impossivel de ultrapassar, é superado.»[4] Na perspectiva de Breton, o objet trouvé não só corresponde a um «desejo mais ou menos inconsciente»[5] – como no seu exemplo de um estranho cabo de colher que acaba por representar a forma do chinelo de Cinderela, imagem que perseguiu Breton ao encontrar aquela colher de aspecto bruto num mercado de artigos de segunda mão, em Saint-Ouen – mas é também capaz de libertar a carga afectiva que estava presa ao desejo insatisfeito (ou talvez recusado), pelo menos se este desejo é reconhecido como tal.
A descoberta do object trouvé é idealmente seguida por uma segunda descoberta, removendo literalmente a capa ou a máscara (a máscara na verdade é o primeiro objet trouvé que Breton e Giacometti seguem no mercado) do desejo inconsciente (que se torna consciente e pode ser admitido) que está na origem da escolha de objet trouvé como objet desiré (objecto desejado). Então uma das funções do objet trouvé parece ser dar forma a um desejo ou, por outras palavras, modelar uma imagem inconsciente que se esconde por detrás do dizível. Com origem no inconsciente do observador, o desejo encarna: o objecto habita a imagem latente que depois se torna «objectificada». O objet trouvé finalmente aparece diante de nós (de objectum, «coisa posta diante de», «algo assimilado ou apresentado aos sentidos») apanha os nossos olhos, a nossa atenção, porque secretamente corresponde àquilo que transportamos dentro de nós mesmos. O conceito de probabilidade objectiva de Breton é próximo desta ideia de planos secretos guiados pelo nosso desejo que também podem aparecer numa obra de arte.
Como a palavra «projecção», «objecção» remete-nos para o verbo em latim jacere, que significa «lançar». Algo interior é lançado fora, projectado no mundo estranho (unheimlich), para ser reconhecido num «objecto» que na verdade é de ordem familiar (heimlich), pertencendo ao Eu. Tal como na concepção de «the Uncanny», o estrangeiro/ estranho e o familiar combinam, coincidem nesta experiência supreendente que caracteriza tanto la trouvaille como das Unheimliche. Em ambos os casos, o objet trouvé demonstra estar ligado a um objet perdu, uma vez presente e consciente, e agora «perdido» para a consciência, reprimido ou esquecido como um desejo inadmitido ou uma ansiedade difícil de suportar, que muitas das vezes nos remete para a tenra infância, quando o sujeito ainda não tinha percepção do seu próprio corpo como uma (possível) entidade. Para Lacan é o «object a», ao mesmo tempo objecto de ansiedade e desejo, que no fim estão interligados.
Deste modo, o objet trouvé-perdu ajuda-nos a compreender o sujeito que enfrenta o seu próprio desejo e ansiedade. Estes só se tornam tangíveis no encontro com «o outro», lançado acidentalmente em frente de nós, pedindo que a nossa vista seja capaz de o reconhecer como objecto de desejo, catalisador das experiências mais estranhas e familiares, mantendo-nos em contacto com os traços unheimlich de nós mesmos.
Footnotes