João Tabarra: «Plus jamais la fin du monde» – Narrativa do Desencanto?
David Santos
A frase «Plus jamais la fin du monde» constitui, apesar da sua pobre inscrição material, o elemento sígnico em destaque nesta obra de João Tabarra, não só pela sua imponente expressão linguística, por oposição à luminosa visualidade da restante imagem, como pela centralidade que ocupa na própria composição. Mas detenhamo-nos para já no que rodeia essa frase-slogan. No seu intrínseco poder significacional, ela está inscrita numa bandeira quase transparente que é empunhada por uma personagem que «marcha», solitária, no interior de uma paisagem ao mesmo tempo rural e industrial, como sempre acontece com os lugares invadidos pelo progresso. E a arte está muitas vezes ligada a essa imagem de ambígua experiência dos opostos (seja entre imagem/palavra, estética/ética ou individual/colectivo), basta lembrar como o impressionismo de Camille Pissarro soube apanhar esse convívio conflitual entre a natureza e a sua transformação ditada pelas necessidades e pela ambição dos homens.
E, em certa medida, esta imagem de João Tabarra parece apropriar-se do modelo impressionista (não em termos técnicos da pintura – pois trata-se de uma fotografia – mas ao nível da composição estético-formal). Repare-se na linha do horizonte a favorecer o domínio imagético e a temática da paisagem, atente-se nas sebes e na vegetação que pontuam o plano intermédio, ou como a personagem, ao meio, caminha, em passo mais ou menos revolucionário, pelo terreno semi-abandonado, convocando igualmente, mas sem qualquer traço de heroicidade romântica, a famosa «Liberdade guiando o povo» (1830) de Delacroix. Aliás, é a figura feminina, essa alegoria da Liberdade, que guia à revolta um conjunto de personagens na obra do pintor francês.
Tabarra prefere a imagem quase descontraída de um homem real mas isolado, que de cigarro ao canto da boca, mantém, apesar de tudo, alguma espécie de dignidade. Perdida na descontextualização do seu acto em movimento, essa figura que segura a bandeira enigmática parece determinada em cumprir uma certa tarefa que pressupomos todavia condenada ao insucesso. Não esqueçamos que, em Tabarra, a performatividade suspensa, o absurdo e o poético constituem os eixos pelos quais avança a experiência de um sentimento que nos aproxima ainda de uma leitura política do nosso tempo. Só que o político aqui não é nunca definido pelo corte preciso da comunicação, mas antes pela difusa declaração de um desejo, de um convite. Na verdade, será esta uma marcha solitária? Não poderá o isolamento da figura que segura a bandeira ser afinal um convite para que nos juntemos a ela? Não será essa paradoxalidade de sentido um apelo à nossa solidariedade e participação? Entre o desencanto derrisório e a vontade de acção, esta imagem expõe uma narrativa complexa, híbrida no seu processo de significação, mas ainda assim impregnada de uma postura afirmativa, de integridade e esperança.
No conjunto de significados que esta fotografia de grande escala nos convida a desenvolver, esse slogan é, apesar da sua apelativa centralidade formal e linguística, não apenas enigmático, como solitário ele mesmo, promovendo sobretudo um sentimento ambíguo entre o panfletário e o nonsense da sua própria proposta, entre a força da acção e o seu absurdo, criando por isso as condições para uma leitura poética da narrativa. Mas porque lemos nesse slogan uma estranha palavra de ordem, descendente ainda dos grandes momentos de revolta, apesar de suficientemente paradoxal para nos lembrarmos da crise pós-moderna e do seu refluxo distópico? «Plus jamais» (nunca mais) é talvez a declaração mais peremptória e definitiva que a linguagem nos permite, mesmo se quase sempre contrariada pela realidade futura. O seu sentido pode conduzir-nos quer ao que já não volta, como àquilo que demora a chegar, podendo constituir a expressão mesma da sua impossibilidade e por aí criar um intervalo irresolúvel. Por outro lado, «la fin du monde» (o fim do mundo) representa o contrário da primeira parte do slogan, ao promover uma localização, um destino concreto, mas que ao mesmo tempo sugere também um caminho imperceptível, pois remete para uma distância longínqua, quase inalcançável.
Como escreveu Emília Tavares «(…) nesta imagem explora-se o conceito de simultaneidade, em que num tempo e espaço que já evoca o Fim do Mundo, se reivindica para que não aconteça o que já aconteceu». É por isso que True Lies and Alibis – Marche Solitaire de João Tabarra é uma obra que nos prende à terra europeia e ao seu futuro, não só porque convoca um passado perturbado pelas teleologias políticas e ideológicas, suas mentiras, verdades e alibis, pontuadas na imagem pela marcha e todas as histórias militares e de revolta a ela associadas, como pela língua francesa inscrita numa bandeira que marca uma tradição reflexiva, mas também um apelo voluntário à ação, ligada ainda a muitas desilusões, projetos frustrados, crises e tentativas de reconstrução do ideário europeu, mítico ou quotidiano. Por fim, nesta imagem não está o mundo, nem a sua herança ou o seu projeto futuro, mas apenas um homem que segura a bandeira, que, tal como nas batalhas antigas, está na vanguarda de uma ideia, mesmo que difusa, feita de coragem e conflito. Sempre imprudente no seu propósito e aventura, essa vontade de pegar na bandeira e continuar a marcha constitui hoje, como sempre constituiu, ainda que de modo diferente, a matriz de toda a ação humana, a força e o motor das conquistas e das derrotas que fazem não apenas uma imagem, mas um património comum.