«Canis lupus hodophilax», de «Fauna Japonica», Lugduni Batavorum (Leiden, 1842), p. 38-39. Autor: Coenraad Jacob Temminck.
A última madrugada surpreende-nos com tanto por fazer.
— Julius Polyaenus
Dormias tão bem e recuperavas do cansaço dos dias, do esmagamento que as ideias levavam aos olhos, das reformulações, das aprendizagens exigentes e óptimas e, pouco depois, pesadas demais e brilhantes e escuras. Dormias em casulo, embrulhado na roupa de cama, e de certeza que, se pudesses escolher, preferirias não acordar. Na vida, não havia agora nada de odioso ou desértico; ela chovia e completava-se e era por isso que podia acabar, como dívida saldada. Conseguiríamos assim evitar o adeus e outras formalidades, sem nenhum peso de consciência. Juras?
Adormecia depois e acordava muito antes de ti. Era como as coisas eram, e via que era bom. Era bom fazer de conta que dormia encostado ao teu tronco, bem encaixado, quando os teus braços não me deixavam sair. Não mexia um dedo nem expelia nenhum som, para não te acordar, e resistia às cãibras pacificamente, até a sorrir de satisfação. Só fazia de morto, sentindo o peso do corpo no colchão, o calor equânime, distribuído. E, passado algum tempo, como o teu sono era totalmente fechado e não dava sinais de vida, verificava se estavas morto, usando a maior delicadeza possível. Era o pânico de um segundo, ou dois, mas o primeiro segundo já é segundo. Para onde terá ido o primeiro? Respiravas, afinal, mas silenciosamente, como os bichos, apenas, sabem fazer. Não respiravas de propósito. A inocência era uma corrente leve. Pensando nisso agora, era muito provável que, ao esconderes-te tanto, colcha até ao queixo, sem nunca me dares as costas, encobrisses as asas. Expiração, inspiração, décimo segundo. Queda em apneia.
Ao longe, ouvi um ruído. A princípio, não lhe dei importância. As casas grandes têm tantos sons, sabem línguas estrangeiras: a dos lagartos e a dos vimes. Depois, o ruído repetiu-se e evoluiu. Tornou-se nítido e voou pelos espaços abertos da casa até ao sótão. Ficou à espera do outro lado da porta. Eram passos pela escadaria acima. O tropel firme de pelo menos duas pessoas, ou quatro patas. E, na sua rápida aproximação, distinguia-se uma nota de surpresa, talvez a verter já golpes de vingança, adivinhações, o volume da marcha a bater alto nas paredes. E a porta do quarto tinha ficado aberta.
Quando acordei, queria vomitar pela cabeça. O alívio, oferecido pelo silêncio e pela paz, não apagou nenhum traço do desastre que aquele acontecimento trouxera à casa no cimo da colina. A tua forma dormente, porém, não se tinha alterado em nenhum ponto. Continuava a imaginar-se nela um sorriso de satisfação, de apaziguada posse, o prazer da fixidez. E o teu corpo julgava que eu, ao lado dele, também dormia. Ele parecia antecipar o dia em que adormeceremos os dois. Dormir é demasiado parecido com morrer, classicamente, banalmente. Mas as semelhanças enervavam-me e teria gosto em destruir a maioria delas. Contudo, há só duas maneiras de levar isso a cabo.
A solução era levantar-me com a maior delicadeza. Assim fiz, fingindo ao colchão e ao soalho que não tinha peso nenhum, e, sem o cuidado de me cobrir com alguma coisa quente, desci as escadas inundadas pelo azul aguado que antecede a manhã. Admirei-me da facilidade com que os corredores me toleravam. O ramo de flores secas no vaso chinês, na mesa do telefone, não me tinha nenhuma animosidade, e toda a gente sorria para mim de dentro das molduras um pouco por toda a parte. Senti-me, com isso, um pouco melhor, mas o cheiro que a casa tinha lembrava-me, ainda assim, de que só depois de vários anos é que a minha pele morta se poderia misturar, afinada, com o pó dos cantos re 78u
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Passava depressa nos espelhos, jump cuts, com vergonha da minha pele. Fui à cozinha. Muita fome e muita sede. Biscoitos e água. Não, café. E uma posta larga de nada em cima da mesa. Sentei-me e fiquei à espera de que o café arrefecesse. Tinha recuperado a calma, o ritmo, mas prevaleciam os nós enrolados da sensação, nós amarrados. Não podia negar que havia beleza em quase tudo o que os olhos tocavam; até nos rectângulos. Os olhos sentados viam trapézios. Os olhos decorativos. O tempo parado, assim, e o café a escaldar distraíam-me da indisposição neural.
Depois de alguns anos, levantei-me, peguei na chávena e fui a deambular. Por razão nenhuma, em vez de subir, dirigi-me ao quarto que estava aberto. Um dos três. Passar o limiar da porta foi chegar a outro mundo. A paleta era diferente.
O quarto cheirava a tomadas eléctricas pouco usadas e a tinta de impressora. A mobília, mais recente do que aquela que se podia ver pelo resto da casa, carregava demais o que poderia ser, de outro modo, o quarto de um adolescente. Os adolescentes juntam e acumulam; mas talvez haja alguns que tendam, pelo contrário, a deitar fora. O olhar deles, mesmo, seria como uma vassoura de vento das valas comuns perante quem lhes passasse, incauto, pela frente; e eles, leves, nem fariam tenção de imaginar onde ficaria no mundo esse seu abismo de lixo. Não sabia a que grupo terias tu pertencido; e os sinais indicavam ainda outra categoria que falhei conceber.
Deitei-me e estendi-me na cama grande, vazia, com a sensação de que o colchão estaria despido debaixo da colcha azul-petróleo. Cama para ninguém. Ou cama à espera, talvez. E era bom e livre saber-te a dormir no piso de cima. Rebolando suavemente sobre a pele do crepúsculo, não estávamos assim tão distantes. Nem éramos separados. Via-te e tocava-te com a minha erecção, de facto. Antevia o pequeno-almoço e, uma por uma, todas as recompensas que o futuro ofereceria pelas subtracções da noite anterior.
Mas não se deve abrir as gavetas dos outros, nem sequer de boa-fé e só para oferecer alguma distracção a um sono tardio. As gavetas dos outros, abertas, ofendem-se no seu pulmão fundo e sabem vingar-se. Ainda que fechadas, depois, elas continuam a gestar o solitário remorso, o toca-e-foge, cobrança de proporções iguais à individuação inviolável, e assim por diante, até à última pessoa.
Sob o roupeiro encastoado na parede, quase ao nível do chão, havia uma gaveta baixa. Debaixo das fotocópias debaixo dos papéis escritos debaixo dos desenhos, uma fotografia. Não era eu. Já não embatiam frente a frente, os nossos hálitos. Segurando a fotografia ao pé da cara, para ver melhor à pouca luz, tentava não respirar, não produzir nenhum ruído, e fazer com que tudo regressasse ao lugar que tinha antes, replicando as inclinações e as assimetrias. As feições mais tenras, o tom de pele mais escuro, menos corpo, outra idade, subtilmente. Acusava-me e arqueava as sobrancelhas, num cinismo tranquilo, de cada vez que me encarava sem surpresa nem pesar, mas confiante, e, por isso mesmo, silencioso. Não dissemos nada.
Devolvi-o ao fundo, para nunca suspeitares, e, pela primeira vez, tive de palpar a volumetria incorrecta dos objectos, sem nenhuma posição que aliviasse o encaixe torto das costas, a culpa, o desgosto, aluição, a crença desfeita de que cada coisa só pode ser ela mesma e coincidir com a sua palavra correspondente. Pela primeira vez, era preciso acabar de acordar, espremer loucamente a indignação e deixá-la rasa como uma folha presa entre os dentes. Ordem de subida. Então, fui acordar-te, maligno e desencontrado, esquiliano. A tua adoração perplexa e a tua meiguice perspicaz, de olhos semicerrados, faziam as respostas preceder as perguntas para confundir tudo um pouco mais.
Não podias acreditar em mim e tentavas misturar-me com a mão para eu ficar mais tangível. E eu, soberanamente ingénuo, já me tinha separado entre a estrutura e o conteúdo, cheio de uma frieza que podia ser apenas diabólica, instintiva, terna. Aprendi a magoar-te sem parar, pensando que assim me salvava, até que a compreensão e o terror te alagaram de cima a baixo, de pé, deitado, às voltas. Não era suficiente ser apenas eu. Há outros egoísmos, ainda muito piores, que uma espécie rara de amor sabe inventar, e estes alastram-se pelo chão em volta e comem os jardins inteiros.
Os braços que saíam dos teus olhos aflitos
insistiam em pôr-me no meu lugar
e preencher para ti o meu contorno
mas não restaria quase nada sobre aquela pira
e terias de continuar
errado
um pouco de cinza.
Era preciso sair antes de que o sol subisse
apenas um pouco mais
para relampejar por dentro do quarto.