Takagi Haruyama, «Lobo de Honshu», Período Edo (c.1850)
Toda a vida conduz à primeira nudez.
— Palladas
A partir de então, só te escondias onde eu te pudesse ver. No princípio, atrás de alguma coluna, na sala de algum bar onde sabias que iria gastar o aborrecimento da tarde. O ar de acaso destes encontros tinha uma nota de comoção e pânico. Desde cedo, surgiu o medo, precocemente. Mas não se pode acusar de precocidade o medo. Seria o mesmo que dizer que a morte pontual foi precoce. Isto, a gramática revela na forma do infinitivo, na do gerúndio e noutras. Morrer–er–er–er–er. Assim, quando dizemos está a morrer isso quer dizer ainda vive, quando dizemos tenho medo isso quer dizer tenho vontade. Ali mesmo, o receio de que começasse a acabar o que ainda não tinha acontecido. Como quando se diz: morrendo, ou, fogo mal apagado.
Até que te escondeste onde nunca tinhas estado. Numa madrugada escura, ainda eu mal tinha acordado, atrás das costas do cadeirão colocado aos pés da cama, a espreitar apreensivo. Depois, não soube como reagir ao puxar a gaveta do roupeiro para te ver lá dentro enroscado. Respirei fundo, aliviado por poder fechar a gaveta depressa. Saboreando essa possibilidade, fiquei contente com a ideia de ela funcionar ao contrário. Podia abrir-te a gaveta. Mas nenhuma toca descoberta serve uma segunda vez. Há que procurar outro esconderijo o mais depressa possível e mudar para lá todos os pertences e os ossos. Assim, foi já ao espelho, observando as reentrâncias em torno do meu pescoço e, seguidamente, o desenho do pêlo que começava desde o alto do esterno e se abria em cruz, para descer numa linha, depois, até ao umbigo e abaixo dele, que, separando a camisola do peito para espreitar a abertura da gola, te apanhei aconchegado, a sorrir um sorriso de vidro que eu nunca tinha visto. Houve ainda o momento furtivo em que, estando a folhear um naipe de fotografias que tinha trazido de volta na minha última viagem, para as preservar, coisas velhas, de família, ousaste colocar-te atrás da minha irmã, os caracóis do teu cabelo preto baloiçavam ao lado dos caracóis louros dela e sobre o seu pequeno ombro de quando era ainda muito criança. Soube então que era preciso apertar muito as mãos e lembrar-me de inspirar devagarinho. Preparar-me. Era a realidade.
Hoje.
Abrir e fechar a porta da entrada, atravessar o corredor, puxar a mão, abrir e fechar a porta do quarto, menos de um segundo, sístole e pressa. Um filme das sombras ao anoitecer. Talvez reconhecesses aquelas regiões, pela expressão que fazias, ou talvez o teu olhar procurasse, por dentro das órbitas, esconderijos melhores. Tentei não te mostrar que
Toda a urgência tem uma espécie de paragem na hora do cadafalso. Queríamos ficar no escuro, fugir do escuro e tirar-lhe os seus pertences; lavá-lo de todo o amido e amassá-lo até ficar só a matéria proteica elástica negra pontuada de brilhos, o crude. Nem os dedos serviam para nada. Os dedos eram semi-amputados ao tocar o que não tinham tocado antes. Nem a língua sabia os sabores novos.
É preciso uma coragem grande. É preciso tapar-se do frio. É preciso dizer o menos possível, com o risco de ser tudo inapropriado. Haveria certamente uma palavra que tudo desmoronasse: um pingo de água no poliedro de papel. Mas ninguém a proferiu. Ficámos sem saber que palavra seria. Graças a Deus. Sem camisa. Sem meias. Uma boca serve para tanta coisa
(era preciso dizer alguma coisa)
e, surpreendentemente, serve também para rir.
Tudo o que dizíamos fazia rir em círculo. Não saber o que fazer tinha graça, e tropeçar outra vez, os sexos como varas sob os passos, fazendo o chão ondear. Ser ignorante tinha piada e agora era confortável. Deixar a ignorância também. As coisas podiam observar-se no momento exacto em que aconteciam. Tinha tudo acontecido ainda não.
O dia já podia acabar porque os gestos por dentro dele podiam ser repetidos. Se me apetecesse, até podia falar de ti a alguém. Alguém podia conhecer-te. Era eu que te conhecia. As coisas tornaram-se muito concretas. Os muros e as árvores cabiam num contorno bem marcado, cada linha no seu lugar, numa hora saudável da manhã, debaixo de uma quantidade acertada de luz do sol.
Porquê?
Por causa do medo.
também. Mas esse medo vem de onde?
Não sei. Vem do chão.
É diferente.
Desculpa?
nte do meu.
Está toda a gente calada.
Com vergonha. Fingem que não estão em casa. Deixa-me pôr assim a perna, em cima da tua.
Nós.
Noz-moscada?
Entra no carro.
Gostei das estradas áridas, como se tivéssemos ido passear ao Irão, cor de caramelo, e também quase como se, entre o betume esmaecido, houvesse o cuidado de algumas orlas nacaradas, ali mesmo, longe do mar. Uma estrada e depois outra, ruas em que só se podia avançar e não encontrar ninguém. Conluiado com a máquina, fundido com a máquina, o corpo estacionário é ambulante, avança sempre e só pára para ganhar balanço e avançar outra légua. Algum faisão que atravessasse o ar vazio naquele instante, na mira de uma caçadeira, não podia ser tão rápido. Os arbustos descontinuavam de existir, tinham ficado para trás e já não estávamos lá. Estávamos numa rotunda, a tua saída tão atempada, nenhuma hesitação, só o passo giratório a embelezar o caminho. Estávamos numa curva, a velocidade mantinha-se estável, segura, louca, era visionária e via nenhum obstáculo, via que ninguém via. A velocidade podia talvez planar naquela paisagem, sobre terraços, mas não era preciso. Mesmo a minha fome bastava e era uma alegria, uma antecipação por alguma coisa de comer que doía como uma certeza boa. A pressão dos pedais, pesada, mas incisiva, não deixaria nenhuma pegada. Aquela era a minha imagem da beleza. Algumas pessoas têm um jeito de se fazer bonitas por meio da perícia. Têm apenas de manipular umas alavancas ou puxar uns fios, de olhos fechados, na direcção certíssima, outra vez, outra vez, outra vez, lâminas, e ficamos boquiabertos sem dizer nada.
A casa ao cimo da colina ao anoitecer. Acima dos muros e dos sótãos da cidade estirada ao longe, lá em baixo, fazenda de morto. No topo da colina, como nas histórias, mas era real. Então vieram a ansiedade e um cansaço leve, e uma distância dos sentidos a guardarem-se das rajadas de vento rasteiro que se adivinhavam nas esquinas. Espirais de pó fino e quente. De manhã, estou a fumar à varanda. Esta varanda iça-se sobre um pequeno parque. O fumo iça-se sobre a varanda, passa por cima da pintura descascada do corrimão de ferro e desaparece. Estou sozinho e nunca te conheci. O dia é o mesmo e o meu quarto sabe que nunca te conheci, está arrumado e limpo e sossegado. De vez em quando, olho para dentro, pela fresta da cortina, para vislumbrar o quarto, a estante preta junto à janela, para me assegurar, enquanto fumo. Convém ajeitar alguns livros colocados fora de ordem. Aspirei ontem o chão de tacos, envernizado, o chão que devia ser calmo, mas estou à espera de uma encomenda. Ou de uma carta? Tenho de fazer compras, mas tenho de ficar à espera. Não posso sair daqui. Correio registado com aviso de recepção. Todo o dia à espera. O dia é o mesmo e não posso sair daqui. E há qualquer coisa que pressinto no outro quarto.
O apartamento é muito pequeno, mas tem dois quartos. O segundo é uma espécie de escritório e sala de estar, e quarto de visitas, e está lá alguém. Conheço alguém que não sei quem é e que está prostrado no chão no outro quarto, inerte, com a cara voltada para baixo, empurrado para junto do sofá, com a cara voltada para o espaço sem luz debaixo do sofá, como se quisesse esconder-se na fresta, como se alguém o tivesse querido esconder lá debaixo. Ainda não vi, ainda estou a fumar na varanda, mas já sei, tenho a certeza absoluta e a trepidação. Alguém foi assassinado na minha casa, no outro quarto, e o dia é o mesmo e não posso sair porque estou à espera da encomenda. Aviso de recepção. Alguém vem cá hoje e vai tocar à campainha, e vou dar um salto, assustado com o apito formal, autoritário, vou ter de abrir a porta e vou ser obrigado a assinar o meu nome. Correio registado. Alguém pode ver. Vai ver. O carteiro vai ver o nervosismo nos meus gestos e perceber que só pode haver um corpo na outra divisão. Vai querer entrar e certificar-se. Então, já terei assinado. Mas o que fazer com um morto? Não posso sair de casa hoje; sou obrigado a ficar à espera. Preciso de comprar algumas coisas. Tenho de arrumar os livros, acertar as lombadas numa bela linha zebrada usando um livro como nivelador. As mãos tremem-me, geladas, folhas mortas quase a desprender-se da árvore. Vêm-me à cabeça pensamentos inconfessáveis. Ideias. Reconheço, mas não sei quem é. Como é que se faz um corpo desaparecer? Ela não me responde.
O meu frigorífico chama-se Miele KFN 28032 D, mas trato-a pelo primeiro nome: Miele. Sozinho, há somente um silêncio antemeridiano por toda a parte, e ouvir a sua respiração regular, sufocada, mas persistente, asmática e atlética, oferece algum alívio. Distrai-me. Tocar a sua pele lisa, a sua barriga provedora, e sabê-la cheia, cheia e fechada, fechada e segura, em todas as prateleiras e gavetas, entranhas, parece apagar momentaneamente o desespero e permitir que ele se converta num leve temor e, quem sabe, em entusiasmo. Quando olhei já estávamos lá dentro e a excitação era tanta que tapava a timidez, e chegava quase a tapar o perigo.
Espero que não planeies matar-me.
Na casa ao cimo da colina.
Mas vou matar-te e ninguém vai saber. Estamos isolados.
Rir ocupa a boca toda. Acariciar ocupa as mãos e não sobra espaço para mais nada, nem cabe em dez dedos uma faca pequena. Sê bem-vindo. Dia santo?
O quê?
Nada, nada.
Um átrio espaçoso, mais do que um baú empurrado para o canto e mobiliário antigo que já ninguém usava, e máquinas desligadas, gostei delas porque, se ninguém as desmontar, as máquinas são imortais, elas só descansam como que em coma, à espera, e uma cabeça de javali na parede. E uma porta mais baixa, ao fundo, que talvez desse para uma adega ou para um corredor particularmente frio nas traseiras da casa. Não íamos lá.
Ordem de subida. Não era a primeira vez que subíamos escadas. As pessoas sabem como subir escadas é prazeroso? Tem beliscões e amparos esvoaçantes, quedas de brincar. Piruetas. Já estávamos na cozinha há algum tempo, a acabar algumas frases num tom inapropriado, com desafinações. Cada um de nós desculpava tudo, imediatamente, na esperança de ser também desculpado sempre que necessário, de minuto a minuto.
Foste tu que me colocaste o avental pela cabeça e o ataste por trás, colado a mim. Riste, pela primeira vez, das coisas reconfiguradas. Em mim, o avental da casa, o avental insigne, a condecoração. O avental da casa em mim, eu no avental, eu na casa, a casa em cima de mim, de vestir. As gavetas da cozinha tinham muitas facas, fechavam e abriam, moedas a tilintar no bolso, dentes a mastigar. Da primeira vez que cozinhei para ti, fingias que me ajudavas. A vontade que tinha de comer, havia semanas, foi desaparecendo, e com ela a antecipação, transformada em ligeira repulsa. Como olhar para aquele prato, à tua frente, e comer com os dentes o que ele tinha, à tua frente, o que eu fiz aparecer? Mas também não tinhas muita fome. Visivelmente indisposto, mas feliz, talvez soubesses alguma coisa que eu não sabia. A alternativa, o rosé. Tudo estava bem e sabia mal. Que alívio. Afinal, eras tu. De carne, o osso.