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A Resistência Poética de Marcelo Brodsky
Valentina Locatelli
Du darfst nicht sitzen und alles auf dich zukommen lassen. Du darfst dich vor allen Dingen nicht dem Gedanken hingeben, dass Mächtige über Dir sind, die doch alles bestimmen.
Não deves sentar-te e deixar que tudo venha até ti. Acima de tudo, não deves abandonar-te à ideia que pessoas poderosas acima de ti determinam tudo.
Peter Weiss[1]
Em 1981, numa passagem da entrevista dada a Heinz Ludwig Arnold, o artista e escritor alemão Peter Weiss resumiu a observação fundamental transmitida pelo seu romance em três volumes com o título Die Ästhetik des Widerstrands (A estética da resistência, 1975-81) da seguinte maneira: em qualquer momento da história – e, naquele tempo, também em muitos países da América Latina dirigidos por ditaduras – as pessoas manifestaram sempre um poderoso ímpeto em resistir à injustiça e às limitações da sua liberdade e, movidas por um estranho princípio de esperança («einen merkwurdigen Prinzip Hoffnung»), levantaram-se em protesto contra governos coercivos pondo em risco as suas próprias vida e liberdade[2]. O livro de Weiss é um relato histórico dramatizado da resistência proletária ao fascismo na Europa dos anos 1930 até à Segunda Guerra Mundial. A sua mensagem, no entanto, continua a ser relevante e reverbera fortemente no último projecto artístico de Marcelo Brodsky, A poética da Resistência.
No seu livro, Weiss, partindo de uma descrição do friso da Gigantomaquia do Altar do Pergamon em Berlim e da sua representação simbólica da presença constante e ubíqua da revolta e do sofrimento na história humana, enfatiza inicialmente a estética, quer dizer a experiência visual da arte, o seu potencial educativo para o espectador e o papel necessário que desempenha em qualquer revolução. Brodsky, por outro lado, trata a noção de resistência primeiro, e antes de mais, do ponto de vista de um exercício poético. «Poética» é a teoria da poesia e do discurso literário, as suas origens na filosofia ocidental podem ser traçadas até Aristóteles e ao seu tratado homónimo (De Poetica, na tradução latina). Enquanto que o primeiro enfoque da poética é o das diferentes componentes do texto, a sua interacção e os efeitos que têm sobre o leitor, a poética não diz só respeito à poesia em verso mas a qualquer trabalho artístico que use a linguagem. Entretecendo texto, imagem e cor, as «fotografias intervencionadas» de Brodsky, tal como as define, exemplificam esta aproximação teorética e tornam-se um instrumento poético de consciência social.
Brodsky está consciente do poder tanto das imagens como das palavras. Nascido na Argentina em 1954, nas últimas cinco décadas desenvolveu de forma progressiva uma poética singular baseada na interacção de fotografias, maioritariamente jornalísticas e de arquivo, e de anotações para atingir este objectivo: activar memórias pessoais e colectivas para comunicar a mensagem de resistência que pode ligar pessoas através do tempo e do espaço. Trabalhando no cruzamento entre as artes visuais, a poesia e o activismo dos direitos humanos, a prática de Brodsky está enraizada na sua história pessoal e na experiência dramática do terror de Estado na Argentina. Durante a ditadura militar argentina (1976-83), o seu melhor amigo Martín Bercovich e o seu irmão mais novo Fernando foram raptados e desapareceram respectivamente em 1976 e em 1979[3], um evento traumático que levou o artista a exilar-se em Barcelona, onde viveu até o período da ditadura militar na Argentina ter acabado e a democracia ter sido restabelecida.
Brodsky, que dirige e é proprietário de uma agência fotográfica em Espanha desde há muitos anos, não usa o suporte fotográfico unicamente como fonte de inspiração. Em vez disso, torna o próprio suporte numa obra de arte. Depois de escolher fotografias recolhidas em arquivos documentais através do mundo, o artista manipula-as[4]: acrescentando comentários escritos à mão e destacando detalhes significativos com a ajuda de cores brilhantes e vivas, estimula um diálogo entre narrativas pré-existentes transmitidas pelas fontes originais e a sua própria interpretação desses textos e imagens. Brodsky tem vindo a fazer uso desta estratégia desde 1996, quando realizou Buena Memoria (Boa Memória), um dos seus trabalhos mais celebrados e irónicos até à data[5]. Partindo de um alargado grupo de fotografias a preto e branco feitas à sua turma da escola em 1967, aos 13 anos de idade, Brodsky interveio nelas com anotações, desenhou círculos, setas e cruzes para traçar visualmente o destino até à data das crianças retratadas nas imagens. Os seu comentários podem ler-se como sucintos epitáfios que celebram compatriotas heróicos: «Claudio foi morto ao lutar contra os militares», «Pablo morreu de uma doença incurável», «Martin foi o primeiro que fizeram desaparecer», «Ana foi viver para Israel»[6]… Este modus operandi continuou a estar na base dos projectos mais recentes do artista, mas com o decurso dos anos ganhou tanto em força como em estilo e na variedade dos seus conteúdos.
Brodsky pode apoiar-se numa tradição argentina com muitos anos, o início da qual data da segunda metade dos anos 60, quando a teoria dos media baseada no trabalho de Marshal McLuhan, Umberto Eco e Roland Barthes era ensinada no Instituto Torcuato di Tella em Buenos Aires. Estas teorias inspiraram vários projectos de vanguarda como o legendário Tucumán arde[7] tanto quanto levaram a geração inteira de artistas ligeiramente mais velhos que Brodsky – tais como Marta Minujín, Eduardo Costa, Raúl Estar e Roberto Jacoby – a usar os media não só como ferramenta para transferir informação, mas também como um «instrumento crítico para a exaltação e a construção de realidades alternativas»[8]. O trabalho de Brodsky é uma reflexão em curso sobre a forma como os media afectam a realidade (e a sua memória) e contribuem para a formação da identidade cultural nacional através da difusão de auto-retratos fortemente retocados da sociedade que representam. Mas o seu trabalho também é uma investigação sobre a forma como os media podem ser transformados num instrumento capaz de criar consciência de tais padrões, ao mesmo tempo que instigam o debate entre gerações presentes e futuras. Como ele explica: «O potencial da fotografia para registar mudanças imperceptíveis e a passagem do tempo no rosto de cada pessoa pode ser exponencialmente extendido para registar a experiência humana, os eventos artísticos e as acções performativas que desenham um tipo de mapas da acção colectiva, criando um itinerário sociopolítico de gestos, de dramatizações, de posições e provocações. Seria uma espécie de aura social, um imaginário colectivo»[9].
A Poética da Resistência reúne dois grupos de trabalhos criados pelo artista entre 2014 e 2019: 1968. O Fogo das Ideias, composto por 55 fotografias de arquivo intervencionadas dedicadas à mobilização e aos protestos internacionais de trabalhadores e de estudantes em 1968, e a série de 20 imagens centradas no processo de descolonização em África e na sua progressiva transição para a independência durante a segunda metade do século XX. O projecto também engloba duas linhas de investigação posteriores levadas a cabo por Brodsky, e que ainda estão em aberto, dedicadas à resistência anti-franquista em Espanha e à pergunta escaldante dos nossos dias acerca dos migrantes e dos refugiados – na qual, pela primeiríssima vez, o artista envereda por uma reflexão sobre questões contemporâneas. Acrescentando apontamentos e legendas claramente não imparciais, Brodsky volta a contar episódios de tumultos e revoluções da maior importância: dos protestos em Londres contra a Guerra do Vietname à luta pela independência do Congo e às rebeliões causadas pelo assassínio do seu Primeiro Ministro anti-colonialista Patrice Lumumba em 1961; das revoltas de associações estudantis de 68, em Dakar, que pediam maior liberdade política ao Presidente Léopold Senghor, ao violento estado de emergência na África do Sul durante a luta anti-Apartheid nos anos 80. Partindo de fotografias a preto e branco que documentam eventos políticos e sociais em torno do globo, as intervenções artísticas, plásticas e textuais, têm por fito implicar o espectador, qualquer que seja o lugar onde ele ou ela vive e qualquer que seja a sua origem, não só numa reflexão conceptual e distante sobre esses momentos históricos e essas histórias de resistência, mas também numa identificação reactiva e pessoal com os seus protagonistas. Qual é a relação entre a repressão sangrenta dos protestos estudantis no México pré-Olímpico de 1968 e o desaparecimento de 43 estudantes em Ayotzinapa no dia 26 de Setembro de 2014? Haverá alguma relação entre a actual crise dos emigrantes na Europa e o passado colonial de África? Estas e outras perguntas semelhantes são levantadas pelos trabalhos de Brodsky e são dirigidas ao espectador.
Brodsky está particularmente empenhado em falar às gerações mais novas. Ele sabe muito bem que, no tempo dos media sociais e da comunicação instantânea, isto pode ter lugar de forma eficaz através de imagens e de breves mensagens. «Profissionais das imagens como eu», aponta ele, «têm a «responsabilidade» de formar positivamente a forma como fazemos uso delas na nossa sociedade»[10]. Como activista dos direitos humanos – ele é um dos co-fundadores do Parque da Memória em Buenos Aires[11] - Brodsky acredita que a sua prática artística pode ajudar a produzir uma mudança positiva promovendo a consciência nas pessoas, em todo o mundo. O seu trabalho é uma fortalecedora manifestação daquela estranha e absurda, mas apesar disso estridente esperança referida por Peter Weiss, que é o denominador comum da acção humana e do desejo passados e presentes, e que instiga a vontade de agir e de trazer mudança que está no centro de todo o gesto de resistência. Pela participação no «discurso global sobre o trauma histórico»[12], as fotografias intervencionadas de Brodsky são «arte mnemónica»[13] com um forte impacto no nosso presente e futuro: ao visualizarem intensamente traumas passados, contrapõem-se ao fatalismo que muitas vezes nos inibe de resistir, agindo e contribuindo para pequenas e grandes revoluções que têm lugar diariamente, à volta do mundo.
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Curadoria de Katherine Sirois
Tradução do inglês por Nuno Miguel Proença
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