01.
– «Sobre Otra Máquina Soltera», Julio Cortázar, 1967.
02.
Desde que nos sentámos naquela mesa do Oliveira e vocês disseram FALSO, que esta palavra ressoa de várias formas ao longo dos meus dias. Não posso deixar de me lembrar da primeira conexão, na ingenuidade do ápice, e óbvia por isso, VERDADE. A velha ideia de que uma coisa existe pelo seu contrário. Compreendemos o peso pela leveza, o grande pelo pequeno, o conforto pela angústia, a memória pelo esquecimento, a vida pela morte. Ainda no ápice voltei à pergunta de António Lobo Antunes no prefácio de A Morte de Ivan Ilitch, de Lev Tolstoi: «trata-se de uma obra sobre a morte ou de uma obra que nega a morte?» Afinal, não será esta obra sobre a urgência de viver de um homem perante a iminência do seu fim? Desde que a li pela primeira vez, guardei Ivan Ilitch, desesperado por compreender a sua derradeira condição, a desconstruir o silogismo: «Caio é um homem, os homens são mortais, logo Caio é mortal.» Lembremo-nos de que um silogismo consiste numa argumentação lógica perfeita, que Ivan Ilitch nega pois «ele, porém, não era Caio, não era um homem em geral.» Sim, Ivan Ilitch não é a abstracção de um nome, nem de um raciocínio. Como o próprio argumenta, a dimensão da sua existência encontra-se acima de qualquer lógica perfeita:
«Caio é de fato mortal e é justo que morra. Mas eu, Vânia, Ivan Ilitch, com todas as minhas idéias, com todos os meus sentimentos – isso é coisa inteiramente diversa. E é impossível que eu tenha que morrer. Seria por demais horrível.»
– A Morte de Ivan Ilitch, Lev Tolstoi, 1886.
03.
«O que é portanto a verdade? Uma multidão móvel de metáforas, metonímias e antropomorfismos; em resumo, uma soma de relações humanas que foram realçadas, transpostas e ornamentadas pela poesia e pela retórica e que, depois de um longo uso, pareceram estáveis, canônicas e obrigatórias aos olhos de um povo: as verdades são ilusões das quais se esqueceu que são, metáforas gastas que perderam a sua força sensível, moeda que perdeu sua efígie e que não é considerada mais como tal, mas apenas como metal.»
– «Verdade e Mentira no Sentimento Extramoral», Friedrich Nietzsche, 1873.
04.
[Man Ray]
A man in love with a woman from a different era…
I see a photograph!
[Luis Buñuel]
I see a film!
[Gil]
I see an insurmountable problem!
[Salvador Dali]
– Midnight in Paris, Woody Allen, 2011.
05.
Tendo uma posição crítica em relação à concepção clássica de arquivo enquanto monumento rígido e imutável da memória, Jacques Derrida questiona a verdade sobre a verdade ao mencionar Freud e a sua «enigmática diferença» entre «verdade material» e «verdade histórica». Enquanto a primeira, «verdade material», refere-se à memória exacta dos acontecimentos, a segunda é construída pelo «retorno do recalque», isto é, os acontecimentos através da «repetição performativa» adquirem a sua própria verdade.
06.
«Se na memória do mundo não há nada a corrigir, a única coisa que resta fazer é corrigir a realidade onde ela não concordar com a memória do mundo. Como cancelei a existência do amante da minha mulher das fichas perfuradas, assim o devo cancelar a ele do mundo dos vivos. É por isso que agora pego na pistola e a aponto contra si, Muller: puxo o gatilho e mato-o.»
– «A Memória do Mundo», Italo Calvino, 1993.
07.
Na sua acepção clássica, arquivo consiste num repositório onde, segundo determinada ordem, guardamos o que consideramos de valor para que permaneça no futuro. Trata-se de um «espaço de memória» ou, como escreve Charles Merewether, «o arquivo, como forma distinta da colecção ou da biblioteca, constitui-se como um repositório ou sistema ordenado de documentos e gravações, verbais e visuais, que é a base na qual a história é escrita.» Michel Foucault em A Arqueologia do Saber, por seu lado, afirma que «o arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito» e ao definir o conceito de arquivo, Jacques Derrida defende que este assenta na memória do termo arkhê, o qual reúne o duplo significado de começo e comando, coordenando dois princípios para o seu espaço:
«(…) o princípio da natureza ou da história, ali onde as coisas começam – princípio físico, histórico ou ontológico –, mas também o princípio da lei ali onde os homens e os deuses comandam, ali onde se exerce a autoridade, a ordem social, nesse lugar a partir do qual a ordem é dada – princípio nomológico.»
– Mal de Arquivo – Uma Impressão Freudiana, Jacques Derrida, 1995
08.
«Se o Partido tem o poder de subjugar o passado e dizer que este ou aquele acontecimento nunca aconteceu – não é mais aterrorizante do que a simples tortura e a morte?
O Partido dizia que a Oceânia nunca fora aliada da Eurásia. Ele, Winston Smith, sabia que a Oceânia fora aliada da Eurásia há não mais de quatro anos. Onde, porém, se mencionava esse facto? Apenas ele tinha esse conhecimento, o que lhe não era permitido. E se todos os outros aceitassem a mentira imposta pelo Partido – se todos os anais dissessem a mesma coisa – então a mentira transformava-se em história, em verdade. «Quem domina o passado,» dizia o lema do Partido, «domina o futuro: quem domina o presente domina o passado.» E no entanto o passado, conquanto de natureza alterável, nunca fora modificado. O que era verdade agora era verdade sempre e sempre. Era bem simples. Bastava apenas uma série inumerável de vitórias sobre a memória – «controlo da realidade» chamava-se. Ou, em Novilíngua, «duplipensar».»
– 1984, George Orwell, 1949
09.
Lev Manovich em the The Language of New Media, resumiu as diferenças chave entre os old media e os new media em cinco princípios: representação numérica, modularidade, automatização, variabilidade e transcodificação. Embora muita vezes designados por new media, uma vez que por não se tratar de uma questão de relação temporal, mas sim de uma questão processual e performativa resultante da natureza digital do próprio medium, torna-se mais evidente a designação digital media. Neste sentido, Wardrip-Fruin define que «para alguma coisa ser digital apenas necessita de ser representadas por valores distintos», sendo que, qualquer objecto uma vez digitalizado pode ser algoritmicamente manipulado:
«(…) we are increasingly experiencing media that not only say things and show things – but also operate. These media have internally-defined procedures that allow them to respond to their audiences, recombine their elements, and transform in ways that result in many different possibilites. These human-designed processes separate such media from fixed media, which have only one possible configuration.»
Digital media distinguem-se, então, dos restantes media por utilizarem processos computacionais, permitindo que, para além de receberem e enviarem determinado sinal, pela sua natureza digital e processual possam operar transformações no próprio sinal.
10.
No «Manifesto Ciborgue», Donna Haraway refere que «uma mudança, ligeiramente perversa de perspectiva pode nos capacitar, de uma forma melhor, para a luta por outros significados, bem como para outras formas de poder e prazer em sociedades tecnologicamente mediadas.» Pois a terminologia «sociedade tecnologicamente mediada» parece ser a perfeita tradução desta época na qual, depositamos a nossa memória em próteses tecnológicas que são também as mediadoras das nossas estruturas sociais, económicas, políticas e afectivas. Desta forma, num momento em que praticamente todos os campos da nossa vida encontram-se mediados por tecnologias, e conscientes de que estas tecnologias são também elas cada vez mais processuais, isto é, capazes de agir sobre a informação, emergem questões sobre agência e controlo, sendo cada vez mais indefinido quem controla quem, nós ou os algoritmos. Como referiu William S. Burroughs, todo o controlo necessita de tempo, de oposição, de concessão e, no limite, de ser controlado.
11.
12.
Quando me aproximei do tema arquivo, encontrava-me a dar os primeiros passos no código e, de uma forma bastante intuitiva, experimentava as possibilidades de transformação que esta nova linguagem me permitia. Nesses primeiros passos, não tinha qualquer base teórica sobre o arquivo ou o digital, apenas sensações sobre o tema que se expressavam em gestos perdidos à procura de algo ainda indefinido. Entretanto as leituras começaram, entre elas a de Mal de Arquivo de Jacques Derrida, a qual orientou as experiências no sentido de tomar o arquivo como um potencial espaço de transformação e ficção. Um sentido que assume o espaço do arquivo – pela sua impossibilidade de guardar toda uma realidade mas apenas fragmentos incompletos – como um espaço lacunar, sendo as lacunas, precisamente, o lugar para se estabelecer novas lógicas.
Em torno destas experiências vários títulos para circunscrever a investigação foram ensaiados. Primeiramente, denominou-se «O Novo no Arquivo» destruído após uma leitura de Boris Groys onde este refere que o novo para ser novo tem de estar no presente, isto é, tem de estar fora do arquivo, pois uma vez arquivado perde o seu sentido de novidade. Um conflito espácio-temporal que nem a teoria da relatividade (essa grande aliada de toda esta investigação) conseguiu resolver. Depois, por falta de melhor, ficou por algum tempo o simplório «O Arquivo e o Novo». Seguiram-se testes e testes às proposições que resultaram no actual «Do Arquivo ao Novo», um título que sublinha o gesto de transformar o passado em futuro, a memória em ficção, uma possibilidade que encerra em si um enorme potencial plástico mas também um enorme potencial subversivo.
13.
Sobre a prática. Tendo como mote as palavras de Walter Benjamin – «nothing that has ever happened should be regarded as lost for history» –, as de Florian Cramer – «in the end, the decoding of the code is not a formal, but a subjective operation» –, e as de Kenneth Goldsmith em Uncreative Writing, os ensaios online procuram, a partir de curtos programas de computador, dar uma nova vida a registos que se encontram disponíveis na internet segundo determinada orientação conceptual, neste caso o FALSO. Denomino estes ensaios de performances online por refletirem várias vertentes do termo. Assim, se verificarmos diferentes acepções encontramos performance enquanto prática em que o corpo funciona como medium que executa uma série de acções, dentro de um determinado tempo e espaço. Na sua acepção de execução, performance consiste na operação de determinadas instruções com o fim de se completar uma tarefa. Katherine N. Hayles, no campo da literatura digital, denomina performance o tempo de produção, ou seja, o tempo que dura o processo que permite que uma obra seja materialmente acessível ao leitor. E, no campo dos new media, Lev Manovich quando se refere às software performances afirma que «what we are experiencing is constructed by software in real time.» Por conseguinte, estas performances online consistem em programas computacionais executados em tempo real, os quais performam uma série de instruções pré-definidas a fim de responderem a uma determinada questão. Neste caso, são utilizados recursos web, isto é, linguagem, navegadores, servidores, redes e protocolos que permitem que a informação online seja acessível e transformada. Por decorrerem em tempo real, o resultado destes ensaios corresponde a uma experiência temporal, ou seja, não a um objecto, mas a um evento, onde a partir de repetições performativas, são geradas novas experiências.
14.
«Sou o produto de uma civilização e de uma cultura a que dou o meu contributo agindo sobre a realidade que atinjo. Sou um artífice que manipula e interroga a matéria com que trabalha.»
– «39 Tisanas», Ana Hatherly, 1969.